No cinema, técnicas especiais relativas às cores são usadas para criar clima, delimitar passagens de tempo, expressar as emoções dos personagens, conduzir o olhar do espectador ou mesmo para produzir uma identidade visual.
Em “Kill Bill” (2003), fora o vermelho do sangue que está sempre jorrando, a fotografia dá uma tenção toda especial à uma cor bem específica. No famoso filme de Quentin Tarantino, no qual Uma Thurman enfrenta sozinha dezenas de mafiosos, o amarelo possui primazia entre todas as cores.
Muito já foi dito que as obras cinematográficas de Tarantino são cheias de referências às outras obras do universo pop: mangás, westerns italianos, filmes de kung fu, etc.. O figurino fashion de Beatrix Kiddo (Uma Thurman) é inspirado num macacão também amarelo usado por Bruce Lee no filme O Jogo da Morte (1978), assim como a roupa amarela usada por um monge em Kill Bill é inspirada na roupa amarela do personagem de quadrinhos Charlie Brown.
Representando entre os japoneses traição e poder, o amarelo é a cor escolhida para que Beatrix Kiddo realize sua vingança: vestindo uma roupa amarela, roubando uma caminhonete amarela, pilotando uma moto amarela.
Contrariando a frieza que a cor sugere, nos últimos tempos, nos vemos cercados de textos alegando que o azul é a cor mais quente. Todos inspirados no polêmico filme do diretor Abdellatif Kechiche, “Azul é a Cor Mais Quente” (2013), no qual uma adolescente se apaixona por uma garota de cabelos azuis.
Se o amarelo em Kill Bill é quente porque remete à uma vingança que se realiza em meio a extrema violência, o calor que o azul sugere no filme de Kechiche se origina em uma paixão erótica juvenil cuja tradução do título original, em francês, é simplesmente “A Vida de Adele”.
A história foi contada originalmente nos quadrinhos, no ano de 2010, na forma de diário, com um título mais próximo ao que a película ganhou no Brasil: “Le Bleu est une Couleur Chaude”. A Autora, Julie Maroh, optou por desenhar sua obra em preto e branco, mas sempre adicionando a cor azul em momentos ou elementos específicos: nos cabelos da personagem Emma, para demonstrar a excitação sexual, para representar a diferença. Aliás, Julie Maroh tem um blog, que você pode acessar clicando aqui.
Mas um filme que realmente usa e abusa de uma gama cores em sua estrutura narrativa é “Herói” (2002), do diretor asiático Yimou Zhang. Como no filme Rashmon (1950), de Akira Kurosawa, o longa conta três diferentes versões da mesma história – que se passa na China antiga, num período pré-imperadores, das quais apenas uma é verdadeira.
Tanto no tom da fotografia, quanto no figurino, as cores saltam aos olhos e ajudam na compreensão da história, sendo usadas na narração do protagonista “Sem Nome” como veículos de sua expressão, marcando épocas, fatos e sentimentos. A cada nova versão, muda a cor predominante na tela: iluminação, as cores das roupas dos personagens, os cenários.
Flashbacks aparecem em verde. Nas imagens do presente predomina o preto. O azul é usado para contar a versão mais melancólica. Na versão real, é o branco que predomina. Mas na primeira versão, a mais quente de todas, pondo em foco a história de amor entre dois assassinos, é contada sob a tradicional cor da paixão: vermelho.
Mas não é só cinema que faz um uso todo especial das cores. Sua prima, a televisão, também o faz. Cheia de referências: cinematográficas, literárias e filosóficas, a série de tv True Detective (2014) se tornou uma verdadeira febre, com a exibição de sua primeira temporada com oito episódios. Como outras séries do gênero, mostra dois detetives durões ás voltas com casos violentos e bizarros. Woody Harrelson, que já esteve em “Zombieland” (2009) e “Jogos Vorazes” (2012 e 2013), entre outros, é Martin Hart, um policial conservador, machista e beberrão, do tipo comumente apresentado em obras de detetives/policiais.
Enquanto isso, Matthew McConaughey interpreta o policial Rust Cole. Que não é nada comum. Com uma inteligência sofisticada, misantropo, antisocial, niilista e cheio de princípios, Rust é o ponto alto da série. O personagem está nos diálogos memoráveis e frases de efeito de Rust Cole que poderiam ter saído da boca de Emil Cioran, Nietzsche.
Mas o que True Detective tem a ver com um post sobre cores? E que, ainda por cima, diz que amarelo é a cor mais quente? É que os crimes bizarros e violentos investigados pela dupla de policiais estão relacionados a um certo Rei de Amarelo, personagem de outra obra, em outra linguagem.
True Detective, com seus inúmeros fãs, acendeu um novo interesse pela obra “O Rei de Amarelo”, coleção de contos assinada por Robert W. Chambers e originalmente publicada em 1895, nos quais um livro, com o mesmo título, exerce uma influência maldita sobre seus leitores, levando-os à loucura.
Note-se que quando o livro foi publicado, entre o final do século dezenove até o começo do século vinte, amarelo era cor “da besta” entre a galera underground da época. É isso que o revisor Carlos Orsi conta na introdução à edição brasileira de O Rei de Amarelo, publicada pela editora Intrínseca: o amarelo “era o matiz do pecado, da podridão, da decadência, da loucura”; “não por acaso que o pecado, a doença e a arte moderna tinham a mesma cor”. Amarelo.
Excelente filme que explora as cores de modo bem peculiar é Dreams de Akira Kurosawa (1990)
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Ainda não assisti Dreams, R. Vale. Mas pus agora na minha lista. Obrigada pela sugestão. 🙂
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