“Sob a Pele”: alienígenas, mulheres e jogos de imitação

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No filme Sob a Pele (Grã Bretanha e EUA, 2013), dirigido por Jonathan Glazer e baseado em livro de Michel Faber, se falou obsessivamente sobre o corpo e o rosto da protagonista Scarlett Johansson,  contrapondo excesso de imagens e escassez de falas, principalmente levando em conta que os primeiros reais diálogos do longa só acontecem depois dos dez primeiros minutos de sua exibição.

Mas apesar dos cabelos exuberantes, do batom vermelho, das roupas provocantes e dos seios fartos evidenciados em algumas cenas, interpreta Scarlett uma mulher?

Em pouco tempo percebemos que a personagem principal é um/a ser alienígena que usa a pele da linda atriz para atrair machos que lhe servirão, literalmente, de alimento e combustível – pois a função da comida é produzir energia. Mas quem poderá afirmar que a criatura seria homem ou mulher? Afinal, teriam esses alienígenas pênis e vaginas? E se reproduziriam de forma sexuada? Carregariam outros de sua espécie dentro de seus próprios corpos?

E como pensam os alienígenas, como sentem? Quais os critérios que guiam suas escolhas? Se são tão diferentes do que somos, o que deveria nos fazer crer que são valores semelhantes aos nossos que os movem? E por que deveríamos supor que numa sociedade alienígena – espelhando a nossa própria sociedade, também haveria uma organização por gênero, por sexo, que determinaria as ações dos indivíduos de acordo com o tipo de órgão sexual que carrega entre as pernas?

É por conta de todos esses questionamentos que erramos ao tomar Scarlett, no filme de Glazer, por mulher. Não devemos perder de vista o fato de que provavelmente não exista em sua sociedade o que conhecemos por homem ou por mulher. À moda do jogo da imitação de Alan Turing, em que um software imitava um ser humano, desafiando um outro ser humano real a descobrir onde estava a máquina e onde estava o humano, Scarlett interpreta um ser que apenas imita uma mulher. Querer determinar a esse ser alienígena um identidade feminina ou masculina é querer forçar nossos binarismos sobre mundos cujas leis desconhecemos por completo.

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Antes, o que a atriz representa é um/a imigrante de uma civilização muito distinta da nossa, um/a usuárix de uma forma aleatória que lhe permitirá melhor executar as tarefas que lhe foram propostas (no livro de Faber, ele/ela é funcionário de uma fábrica interplanetária de alimentos, onde a carne humana é uma iguaria valiosa). Assim, a aparência de mulher sexualmente disponível e convidativa que utiliza, antes de revelar sua identidade de gênero, revela apenas que compreende algo de nossa sociedade e por isso a escolheu como instrumento necessário para fisgar corpos de homens ávidos por um sexo fácil e gostoso, mas que o invés disso terão… (deixemos para lá! Não vamos antecipar as surpresas do filme!).

Contudo, num filme tão aberto a interpretações (há quem diga que se trata de uma metáfora à imigração), podemos apostar que esse ser alienígena não fez a lição de casa como deveria: não estudou o suficiente para garantir um vocabulário mais rico, como denuncia a monotonia das falas de Scarlett, principalmente quando não está mais em sua caçada e pode abandonar a sua coleçãode  frases feitas. Também não estudou o suficiente para entender o conceito de beleza, como revelam elogios rasgados endereçados a um jovem cuja aparência em nada corresponde aos padrões de beleza vigentes, provocando risinhos zombeteiros em plateias politicamente incorretas. Mas o que é pior de tudo: não estudou o suficiente sobre a relação entre homens e mulheres para garantir a própria segurança física, como descobrimos no decorrer do filme.

E é aqui que o tiro sai pela culatra.

Sem querer apresentar mais um spoiler, entre o rol de coisas em relação às quais o/a alienígena cometeu falhas na assimilação, devemos incluir – com certeza, os riscos aos quais se expõe ao escolher para sua atividade predatória um disfarce feminino num planeta em que mulheres são vítimas preferenciais de vários tipos de violência. Se na primeira parte do filme é o alienígena que se impõe, objetificando os humanos machos recolhidos em estradas solitárias, na segunda parte da película assistimos uma reviravolta – e é o alienígena que é objetificado ao ser erroneamente tomado por mulher.

Erramos ainda, se supomos que a criatura só é violentada porque possui o rosto de boneca e o corpo tão voluptuoso quanto o de Scarlett Johansson. Esse ser é violentado porque seu aspecto externo imita a aparência em seus aspectos gerais de uma mulher, independente da categoria na qual possam ser classificados seus atributos estéticos. E esse ser descobre, da pior forma possível, o que é carregar, sobre a sua, essa outra pele.

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