Merda de Artista

Por Lindevania Martins

Merda de artista

O artista plástico Piero Manzoni organizando latas de conserva com suas próprias fezes.

Em 1917, Marcel Duchamp chocou o mundo das artes.

Retirou o  urinol do banheiro e o trouxe para o espaço principal de  uma exposição artística.   Inventou, assim, o “ready-made”: o uso de um objeto cotidiano e não-artístico como… artístico.

Ao utilizar elementes pré-existentes, afastando  seus usos comuns em prol de usos novos de acordo com  certos conceitos, Duchamp  também afastou a necessidade da técnica visto a desnecessidade de dominar a matéria-prima, ampliou os limites da arte e abriu a possibilidade, talvez, a qualquer um  de ser artista. Por outro lado, forçou uma nova postura do público de arte, confrontado com obras questionadoras,  provocativas, incômodas.

Em 1961, foi a vez  Piero Manzoni.

O italiano pensou, elaborou e apresentou uma obra inédita. Visceral e íntima por excelência, para a qual não deu o sangue, mas algo que poderia ser extraído do seu corpo com menos sacrifício e de forma mais natural.

Trata-se do trabalho “Merda d’Artista”: fezes de Manzoni enlatadas e vendidas  a peso pelo equivalente a 1 euro. Foram um sucesso. As 90 latas  de conserva se espalharam por vários museus pelo mundo, incluindo os respeitáveis Tate de Londres,  MoMa de Nova Iorque e o Georges Pompidou de Paris.  Nos rótulos das latas, podia-se ler: “Merda d’artista, numerata, firmata e conservata al naturale”. Alguns anos depois, algumas dessas latas explodiram, por conta de corrosão e da expansão dos gases.

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“Vendo uma idéia. Uma idéia dentro de uma lata”. (Piero Manzoni)

A obra do italiano engrossou a discussão sobre os limites da arte. Dicussão esta que continua até hoje, com novos protagonistas engendrando com frequência rupturas pobres. Manzoni questionava as formas tradicionais da arte, seus objetivos e métodos.  Entre suas influências, são citados, além do próprio Marcel Duchamp, Jackson Pollock e Yves Klein. Embora tenha sido o primeiro artista plástico a realizar algo tão radical, poetas como Antonin Artaud já haviam tomado a “merda” como tema. Milan Kundera, em “A Insustentável Leveza Ser”, discorreu logamente sobre os hábitos fecais e banheiros em diversas partes do mundo. Por aqui, o brasileiro Rubem Fonseca escreveu o conto “Copromancia” cujo protagonista era obcecado por seus resíduos.

Manzoni também produziu outros trabalhos polêmicos.  Em 1958, vendeu balões preenchidos com ar de sua própria respiração: quem os adquirisse poderia respirar o “ar do artista”.  Em 1960, imprimiu suas expressões digitais como assinatura em ovos cozidos e convidou o público para comê-los. Toda a exposição, cujo nome era “Consumação da Arte”, foi devorada em 70 minutos. Em 1961, criou um pedestal chamado “Base Mágica”: quem nele subisse se transformaria em uma obra de arte. Chegou a pensar em encher garrafas com seu sangue e vendê-las.  Mas nesse caso, ficou só na intenção.

Enquanto alguns aplaudem Manzoni, outros dizem que esse ato de excreção, e não de criação, justifica a expressão de que a arte contemporânea é merda.  Literalmente. Quando tudo tem sentido, nada tem sentido. Quanto tudo tem valor, nada tem valor, pois tudo se torna intercambiável.

Enquanto o italiano fez trabalhos com seus resíduos corporais, o brasileiro Vik Muniz recria símbolos mais do que conhecidos da arte mundial, como a Monalisa de Da Vinci ou o Che Guevara de Andy Warhol, utilizando também materiais inusitados, embora muito mais caros que os utilizados por Manzano, como diamantes;  gostosos, como chocolate ou manteiga de amendoim; ou doces, como acúcar. Ou não tão asquerosos, como lixo. Aqui, o mais importante é o uso inusitado do que o que está sendo criado. Digo, recriado.  Não seria isso uma forma de perseguir originalidade por vias oblíquas?  Expressão de uma necessidade narcisística de instaurar “qualquer coisa” nova?

Em  2007, Manzoni teve uma de suas obras vendidas por mais de 1 milhão de libras.  Uma lata com fezes, hoje rara, alcançou há pouco anos o valor de 120 mil libras. O alto  preço de suas obras no mercado não desatualiza a pergunta que se faz desde os anos 60: será isso arte?

E por outro lado: será que Manzoni não foi levado a sério demais? Será que tudo que ele queria não era rir da arte, inclusive da própria?  Rir de nós?

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Página oficial do artista, falecido em 1963, com apenas 29 anos de idade:

http://www.pieromanzoni.org/index_it.htm

3 Respostas para “Merda de Artista

  1. Mas se pensarmos bem, o que Manzoni fez é magnífico. Por mais que seu trabalho possa ter sido feito para tirar sarro dos críticos, fruidores enfim todo o público, elevar uma lata de fezes a categoria de arte não é pra qualquer um!!!
    Por quê uma pessoa comum não tenta expor uma lata destas numa galeria de seu município? certamente as pessoas sairão com vassouras atrás deste!
    Enfim!!
    Sendo Merda. Mictório, Mona lisa todas tem um sentido de sua existência! por mais que o sentido seja negar o próprio sentido de ser.

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