Somos Todos Ciborgues

O popular anime “Ghost in the Shell” é povoado por ciborgues: seres humanos que possuem partes mecânicas e/ou eletrônicas implantadas em seus corpos.  Enfim, híbridos. Através desses implantes, os ciborgues conseguem ultrapassar os limites do corpo humano, tendo aumentadas tanto suas capacidades físicas quanto intelectuais.

Ghost in The Shell

Ciborgues sempre permearam os filmes de ficção científica. Pareciam coisa de um futuro distante, apenas imaginável. No entanto, pensadores como Donna Haraway e Andy Clark  sustentam que já somos ciborgues. Afinal, próteses, equipamentos e dispositivos que  interferem, corrigem, aperfeiçoam e embelezam o corpo humano há tempos vêm sendo usados por nós.  Técnicas diversas têm nos garantido mais saúde e uma vida mais longa. Em cirurgias de cataratas, são implantados cristalinos artificiais depois dos naturais serem removidos. Lentes de contato são próteses oculares artificiais.

E quantos já usaram ou usam aparelhos ortondônticos ou óculos de grau? Quem já não viu uma pessoa com pinos na perna após um acidente? Quantos não usam marcapassos, aparelhos eletrônicos criados na década de 60 e implantados no corpo humano, cuja finalidade é regular as batidas de corações defeituosos? Aliás, o primeiro implante de marcapasso aconteceu em 1958, realizado pelo cardiologista sueco Ake Senning.

Segundo Haraway, o ciborgue oferece uma possibilidade quebra das limitações tradicionais de gênero, feminismo e política,  ao se mover além de dualismo.  Por não ser homem, nem máquina, masculino, nem feminino, o ciborgue pôe por terra toda a questão identitária.

Os pesquisadores Gray, Steven Mentor e Figueroa-Serriera consideram como ciborgue qualquer possuidor de órgão, membro ou suplementeo artificial, incluindo aqueles que fizeram usos de substãncias imunes, como vacinas, e que fazem usos de psicofarmalogia para pensar, se comportar ou se sentir melhor. Outros organismo, através de avanços tecnológicos são utilizados com os mesmos objetivos.


Cláudia Mitchell com sua prótese

Em 2006, Claudia Mitchell, uma mariner americana que havia perdido o braço esquerdo  em um acidente de moto, teve implantada uma prótese biônica que a mesma comanda apenas pensando no tipo de movimento que gostaria de realizar com aquele braço, como fazia com o antigo braço orgânico.

O filósofo Andy Clark,  através da Teoria da Mente Estendida,  defende que os seres humanos são naturalmente ciborgues, independente de portarem ou não implantes, chips ou terem se submetido a transplantes. Isso se deve ao fato dos humanos incorporarem, desde sempre, ferramentas que ampliam sua mente, assim compreendida como corpo, cérebro e mundo. Uma das ferramentas de maior destaque seria a fala, que esconderia sob uma aparência de naturalidade, artifícios que a fizeram roubar parte das funções dos órgãos de respiração e de deglutição. O uso dessas ferramentas faz com que a mente humana se expanda e se transforme numa mente estendida.

Andy Clark



Ciência, ao invés de sexo…

Barry Stevens: "Não houve ato sexual na minha concepção, exceto masturbação" .

No livro “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, ninguém mais conta a história da cegonha para ensinar às crianças como os bebês surgem. A cegonha, que sempre teve como função esconder o ato sexual, está aposentada. Afinal, para que ela serviria num mundo em que o sexo deixou de estar na origem de cada nascimento? Mais fácil contar a verdade. Na obra de Huxley, as crianças vêem ao mundo de forma limpa e asséptica: são fabricadas sem intercurso sexual, em frascos de vidro, e  cultivadas/criadas em centros de reprodução. É  um mundo onde também não existem mais “mães” ou “pais”.

A obra ficcional de Huxley foi escrita no ano de 1931. Setenta depois, em  2001, Barry Stevens, cineasta radicado em Toronto, lançou o documentário de cunho autobiográfico chamado Offspring (“Descendência”, em português). Gerado através de inseminação artificial, o documentário mostra a procura de Stevens pelo doador anônimo de sêmen que lhe originou: seu pai biológico. Nessa busca, não encontrou o doador, mas descobriu que possuía uma família espantosamente gigantesca: entre 500 a 1000 irmãos!

As tecnologias reprodutivas possuem grandes opositores. A Igreja Católica, o que não surpreende, está entre os maiores. Além do argumento clássico de que o homem estaria interferindo  na obra de deus ou na natureza, um dos principais motivos é que a obtenção de sêmen se dá através da masturbação, o que seria pecado. Outro argumento, entre tantos, é de que a técnica induz a percepção de procriação e ato sexual como coisas separadas, o que enfraqueceria as relações maritais. Afinal, se os indíviduos ficam desobrigados até mesmo de sexo para se reproduzirem, imagina do casamento…

Os avanços biotecnológicos no tocante à reprodução, incluindo a pílula contraceptiva, pílula do dia seguinte, fertilização in vitro e outros, produziram grandes mudanças nas vidas das mulheres.  Ficamos aliviadas do peso de uma concepção que finalmente pôde ser adiada, eliminada, ou produzida num determinado período. Uma maior assimetria entre homens e mulheres tambŕm foi permitida. Não só no tocante a sexualidade, mas também às relações econômicas e trabalhistas: a mulher poderia optar por se dedicar primeiro ao trabalho e se estabilizar financeiramente, podendo deixar a maternidade para depois.  No entanto, há aspectos que merecem ser observados mais de perto.

Uma das críticas feitas a tais tecnologias é que em decorrência delas não haveria investimento para a pesquisa e o tratamento da causa da infertilidade. Assim, se por um lado se elimina o status de “sem filhos” de um casal, de um homem ou mulher, por ouro lado não se age para superar aquilo que lhe deu causa. Tais tecnologias medicalizariam de forma excessiva o corpo da mulher, submetido muitas vezes a tratamento sem maiores considerações quanto aos riscos à sua saúde. E ainda existiriam as questões culturais que nunca são discutidas: a decisão de ser mãe, nunca é tomada em completa liberdade, pois a maternidade é identificada culturalmente como uma marca de  feminilidade.

Politizando… os cabelos

Cabelo pode ser coisa política?

Na década de 80, Luiz Caldas fez sucesso com uma música na qual dizia: “Nega do cabelo duro que não gosta de pentear…”. Tempos antes, os Anjo do Inferno e Elis Regina já cantavam: “Nega do cabelo duro, Qual é o pente que te penteia?”.

Os cabelos dos negros sempre estiveram ligados a representações negativas que o marcavam como símbolo de inferioridade, especialmente das negras, sendo um motivo fácil para  piadas. Ou outros tipos de estigma social.

Nilma Lino Gomes afirma: “O cabelo do negro, visto como “ruim”, é expressão do racismo e  da desigualdade racial que recai sobre esse sujeito. Ver o cabelo do negro como “ruim” e do  branco como “bom” expressa um conflito. Por isso, mudar o cabelo pode significar a tentativa  do negro de sair do lugar da inferioridade ou a introjeção deste. Pode ainda representar um  sentimento de autonomia, expresso nas formas ousadas e criativas de usar o cabelo.  Estamos, portanto, em uma zona de tensão”.

Em dezembro do ano passado, a Folha.com e o Globo.com divulgaram o caso de Ester Elisa da Silva Cesário, estudante de pedagogia que teria sido vítima de discriminação no Colégio Anhembi Morumbi, onde estagiava, em função de seu cabelo crespo. A diretora do colégio lhe teria tido que o padrão da escola era cabelos lisos e que era deveria alisar os cabelos. Como resposta, a estudante prestou queixa na Delegacia de Crimes Raciais.

 Um corpo é construído biologicamente, mas também culturalmente. A rejeição aos traços típicos dos negros/negras, como os cabelos crespos, afetam profundamente a auto-estima. Por isso, entupimos nossos corpos de substâncias tóxicas, muitas provavelmente cancerígenas, como o formol, para garantirmos nossa aceitação dentro do padrão: lindas, com cabelos lisos.

A ativista Angela Davis integrou o Black Power e os Panteras Negras.

 Na década de 60, os Estados Unidos foram sacudidos por vários  movimentos contra o racismo, reinvidicando  direito civis para os negros e  denunciando a opressão exercida pelos brancos. Entre eles, o Pantera Negra e  Black Power,  expressão  por muitos identificada como sendo apenas um estilo de cabelo.

O Black Power, ou Poder Negro, pregava o orgulho de ser negro e a necessidade da construção de valores próprios. Em decorrência de tais movimentos, surgiram políticas e instituições culturais focadas em promover os interesses coletivos de negros, seus valores e culturas.

Um outro movimento do período foi o “Black is Beautiful”, que tornou popular o visual afro, ao encorajar os negros a se sentirem bem com sua aparência. O movimento encorajou mulheres e homens a assumirem suas feições naturais, a deixar de alisar os cabelos ou tentar branquear a pele (tá… Michael Jackson não aprendeu a lição…). Angela Davis, uma das mais famosas ativistas daquele período, possuía uma cabeleira tipicamente black power. Seu cabelo não era apenas um penteado, um corte, um estilo. Era um símbolo do orgulho de suas origens negras, de liberação e revolução cutural.

Na mesma época, no Brasil, vivia-se um momento de grande repressão política, sob o regime político militar. A existência de racismo era negada pela propaganda oficial, que afirmava vivermos numa perfeita harmonia racial.

A nossa sociedade contava com um grande número de mestiços e forma como se identificava um negro nos Estados Unidos era muito diferente da forma brasileira. Se lá contava a origem, independente da aparência, no Brasil, contava-se a cor da pele e a textura do cabelo, o que tornava mais fácil uma parda com cabelo alisado passar por branca.

Protesto em frente ao Colégio Anhembi Morumbi.

O caso de Ester expõe, mais uma vez, o racismo velado existente na sociedade brasileira e nos faz pensar que, numa sociedade que celebra a diferença, há pouco espaço para certas diversidades. Quanto  ao Colégio Anhembi Morumbi, após a denúncia, houve um protesto com vários ativistas  em frente a escola, reafirmando que o cabelo dos negros não é ruim: “Meu cabelo é crespo, é livre, é bom! Ruim é o racismo!”.

Referências:

AGUIAR, Gilberto Orácio. Corpo, Negritude e Cidadania: uma reflexão a partir de Marcel Mauss. Disponível na internet em: tede.biblioteca.ucg.br/…/GILBERTO%20ORACIO%20DE%20AGUI…. Acessado em 29.01.12.

GOMES, Nilma Lino. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Disponível na Internet em: www.rizoma.ufsc.br/pdfs/641-of1-st1.pdf . Acessado: em 30.01.12.

O que pode um corpo?

Diz Spinoza que um corpo é feito de relações com outros corpos e que, dependendo dessas relações, um  sujeito poderia ser fraco ou forte, triste ou alegre. E o que pode um corpo? Dependeria de sua reação ao ser afetado por outros corpos e do quanto seria afetado. E Spinoza completa: ainda não se sabe o que pode um corpo.

Catálogo de Indisciplinas inicia este post com Spinoza para anunciar que aqui falará sobre o corpo. Esse mesmo que tem sido subestimado pelas religiões ao escolherem dividir um sujeito em corpo e alma e afirmar a supremacia desta sobre aquele.

Catálogo de Indisciplinas também não sabe o que pode um corpo, mas se espanta e observa o seguinte:

1. Raimund Hoghe

É um aclamado dançarino e coreógrafo de dança contemporânea alemão. Baixinho e corcunda, seu corpo está na contramão do que é esperado de um bailarino.

“Pier Paolo Pasolini falou sobre jogar o corpo na luta. Estas palavras me inspiraram a subir no palco. Outras inspirações são a realidade que me cerca, o tempo presente, as minhas memórias da história, pessoas, imagens, sentimentos e o poder e a beleza da música e do confronto com o próprio corpo que, no meu caso, não corresponde aos ideais convencionais de beleza. Ver corpos no palco que fogem aos padrões é importante – não só pela história, mas também pelo atual desenvolvimento, que está levando os seres humanos a se tornarem objetos de design. Sobre a questão do sucesso: é importante ser capaz de trabalhar e seguir seu próprio caminho – com ou sem sucesso. Eu simplesmente faço o que devo fazer”. (Raimund Hoghe)

2. Amy Palmiero-Winters


É uma atleta norte-americana que vem batendo sucessivos recordes. Perdeu uma perna num acidente de carra e  hoje corre utilizando uma prótese mecânica que se adaptou perfeitamente a seu corpo.  Amy  compete no mesmo nível de pessoas sem deficiência. Em 2010, foi a única amputada a correr uma prova de 24 horas, percorrendo mais de 200 km ininterruptos. Causou espanto. Após isso,  ingressou no time americano de corrida de rua, composto por atletas sem deficiência. Envolveu-se em uma polêmica por superar, com a prótese,  a melhor marca que obtivera quando ainda corria com sua perna natural. A acusação era de que a perna mecânica a favorecia, permitindo que corresse mais rápido que atletas que não dispunham do artefato. No entanto, testes mostraram que  Amy teria um desempenho três vezes melhor se tivesse uma perna de carne e osso.

3. Evgen Bavcar

É um fotógrafo esloveno que se tornou cego de forma acidental aos  12 anos de idade, quando  perdeu o olho esquerdo ao ser perfurado por um galho de árvore e, algum tempo depois, o segundo o olho em um acidente com um detonador de minas.  Doutor em história, estética e filosofia pela Universidade de Sobornne, Bavcar prova que a fotografia não é exclusividade de quem pode enxergar, pois todos constroem imagens interiores.  No documentário brasileiro “Janelas da Alma”, que tinha como tema a visão,  o fotógrafo declarou: “Mas vocês não são videntes cIássicos, vocês são cegos porque, atuaImente, vivemos em um mundo que perdeu a visão. A teIevisão nos propõe imagens prontas e não sabemos mais vê-Ias, não vemos mais nada porque perdemos o oIhar interior, perdemos o distanciamento. Em outras paIavras, vivemos em uma espécie de cegueira generaIizada”.

4. Fauja Singh

Com cem anos de idade, é o maratonista mais velho do mundo. Nascido na índia, suaa vida de atleta começou aos 89 anos de idade, quando estrou na Maratona de Londres, em 2000.  Harmander Singh, seu treinador, falando sobre seu estado físico, afirma que um exame de densidade óssea de 2010 revelou que sua perna direita era similar a de um homem de 25 anos e a esquerda a de um homem de 35 anos. Ao ter tomado conhecimento disso, Fauja teria comentado: “Eu sabia que minha perna esquerda era fraca!”.

Tomar posse do seu próprio corpo e descobrir sua potência… um plano para 2012?