Talvez se conheça uma cidade por suas vitrines?
Nova Iorque em imagens. Pouco usuais.
Lindevania Martins
Contam-se histórias sobre povos que acreditam, estranhamente para nós, que fotografá-los lhes fará perder a alma. Afinal, como existir em duplicidade?
Mas as câmeras duplicam o mundo. Sem que nada se perca.
Crescidos no excesso de imagens, fixas ou móveis, a enxurrada de novas imagens que produzimos ao nos deparar com uma cidade nova e bela, antes que tentativa de conhecimento é tentativa de aprisionamento de um instante, para que a memória permaneça e possa ser compartilhada.
Susan Sontag acredita que o maior feito da fotografia é nos dar o sentido de que podemos ter o mundo inteiro em nossas cabeças: uma antologia de imagens.
Fotografar uma cidade é transformá-la em um objeto que pode ser possuído, colecionado, preservado. A fotografia implicará sempre numa relação com o passado: cada novo olhar o trazendo de volta. E sem que nada na cidade se perca, a trazemos conosco.
Mas como conhecer a cidade?
Uma cidade é sempre algo artificial. Então, conhecer uma cidade, parece implicar, antes que conhecer o que seus habitantes possuem por sorte, graças a natureza, em conhecer o que esses mesmos habitantes construíram.
Conhecer uma cidade parece implicar, ainda, em com ela estabelecer uma relação que exclui o mistério e a surpresa assentados no tanto de ignorância que dela temos. Caminhar, talvez, para a banalidade que não lhe lança mais olhares curiosos, que a transforma em simples meio ou obstáculo.
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Referencia:
SONTAG, Susan. On photography. New York: Picador, 1990.
Lindevania Martins
São Tomé, o santo católico, ficou famoso por só acreditar no que seus olhos viam. Viveu há dois mil anos , quando não existiam nem cinema, nem fotografia, e as imagens eram com muita dificuldade construídas.
Sem tais recursos modernos, durante séculos os pintores se empenharam em conseguir transpôr para a tela a maior verossimilhança possível com o objeto concreto. No entanto, a imagem daí resultante não era digna de crédito enquanto instrumento de representação do real. Além das limitações técnicas, o artista sempre poderia representar elementos inexistentes, modificar o objeto, colocá-lo ou retirá-lo de cena conforme sua arbitrária vontade.
O surgimento da fotografia colocou em crise a arte figurativa. No entanto, expandiu os olhos de céticos como São Tomé, na medida que se apresentou como um olho mecânico que gerava imagens idênticas àquelas existentes na realidade através de um processo técnico neutro no qual “o fotógrafo não era o autor de um trabalho minucioso, mas um espectador da aparição autônoma e mágica de uma imagem química”[1]. Assim, a fotografia já surgiu dotada de credibilidade, satisfazendo a necessidade dos céticos de “ver para crer”.
Característico do séc. XIX, este é o discurso que apresenta a fotografia como espelho, onde esta é apontada como a imitação mais perfeita da realidade. Foi sob essa ótica que Charles Baudelaire acusou a fotografia de empobrecer o gênio artístico francês ao afastar as riquezas do imaginário e substituir funções da arte pela aridez de seus procedimentos. André Bazin[2], por outro lado, aponta que a fotografia libertou as artes plásticas de uma obsessão por semelhança, possibilitando o surgimento de artistas que trilharam caminhos radicalmente opostos a tal obsessão.
No séc. XX, surgem discursos sobre a fotografia que se fundamentam na idéia de transformação do real pela foto, denunciando que encarar a fotografia como espelho, como mimese, não passa de ilusão de um olhar ingênuo.
Tais discursos sustentam que a fotografia é um instrumento de interpretação, um código cultural no qual não existe neutralidade : o fotógrafo escolhe um ângulo de visão e organiza a imagem; isola um ponto preciso do espaço-tempo, excluindo os demais elementos do contexto; a significação da mensagem veiculada na foto é determinada culturalmente; a foto é ilustração de um conceito previamente estabelecido na fantasia do fotógrafo; a foto possui conteúdo ideológico[3]; etc.
Outro discurso surgido no séc. XX, distinto dos dois previamente apresentados, identifica a fotografia como traço de um real. Embora a foto não seja espelho, embora código através do qual transforma e interpreta a realidade, a coisa real posta diante da câmara fotográfica resiste e não pode ser ignorada, de forma que a foto dela não se distingue e o espectador, apesar da consciência de todos os códigos, é obrigado a voltar seus olhos para a contemplação do real.
Concebida ora como espelho, ora como instrumento de transformação do real, ora como traço do real, pergunta-se: a fotografia pode mentir?
Referências:
[1] FABRIS, Annateresa. A invenção da fotografia: repercussões sociais. In: Fotografia: usos e funções no séc. XIX. Org. Annateresa Fabris. São Paulo: USP, 1998.
[2] DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. 8 ed. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1993.
[3] ARCARI, Antônio. A fotografia: as formas, o objeto, o homem. São Paulo: Martins Fontes, 1980.