Asas para a imaginação e vida ao eco interior

por Daniel Albuquerque: “Teresa Decide Falar”, de Lindevania Martins

Quando comprei meu ingresso para decolar nessa jornada, não esperava que, mesmo antes de apertar os cintos, já tivesse sido puxado pelas pernas.

Há um reduto muito bonito no escopo de cada uma dessas 15 histórias que é a realidade se tornar mais palpável dentro do universo fictício do que, por assim dizer, na realidade ordinária.

Da fragilidade à incompreensão em “Duas irmãs” que ás vezes grita nos espaços gélidos infinitos, clamando por uma centelha que se reconheça em qualquer alma gêmea perdida pelo mundo, para o impulso que, se voltando para o escuro íntimo do ser, escave até encontrar alguém que possa equilibrar força e emoção para seguir em frente, em frente unificado ou duplicado, mas em frente.

Aqui, nenhum de nós poderia ver Maria Lúcia e Maria Rita brilhando sorridentes sob o teto de Selene, pois, o mistério delas era maior. Jamais poderíamos escolher entre a importância da jornada ou da companhia, tão logo Rita buscara refrigério em Lúcia para seguir adiante.

Mas eu, de outro modo, se pudesse, me esgueiraria na petulância do “Menino por dentro” para pavimentar minha jornada. Comeria de tudo que visse ou viesse pela frente – dado um bom taurino – não me preocupando com os olhares e as mentes atrofiadas daqueles que me assistissem porque quem tem fome de conhecimento come também dos antídotos contra o preconceito e não se intimida com as setas inquisitivas.

Se eu me preocupasse, morreria. Mas de forma nenhuma, daria a eles o sabor do veneno que escorre pelo canto de suas bocas quando criticam e abraçam posicionamentos totalitários. A morte pra mim, deve ser uma escalada magistral, tal como em “Seleção de emprego”, uma crítica mordaz à classe, hora pleiteante de nosso tempo na informalidade, hora refém da mecânica CLT, que não tendo óleo que lubrifique as engrenagens da consciência, marcha gradativamente para uma morte inconsciente. Tão inocente quanto subir numa cadeira e pular na bala da sorte, é nesse momento que o filtro da razão é suspenso. E quando o capuz é colocado na cabeça, perdeste a visão de onde queria chegar, emprestou tua vitalidade e retornou ao nada.

De qualquer forma, emprestei também meu coração às minhas três histórias prediletas e, desse modo, fico feliz por ser fã e amigo pessoal dessa pessoa.

Tudo que podemos ver, sentir e ser: a poesia de Adriana Gama de Araújo

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Poeta Adriana Gama de Araújo

TRaNSiTo” (Olho d’Água, 2019), livro que reúne quarenta poemas de Adriana Gama de Araújo, é a sua segunda publicação no campo da poesia. Formada em história e com mestrado na mesma área, sua estreia ocorreu em 2018, através do belo “Mural de nuvens para dias de chuva” (Penalux), onde já demonstra forte identidade e maturidade, trabalhando temas sensíveis como a finitude, o efêmero, o amor e a solidão, entre tantos outros, dialogando com grandes textos da literatura.

TRaNSiTo” mantém o estilo de Adriana é uma experiência tão transformadora que não deixamos de nos questionar, a partir das provocações da poeta, sobre os efeitos da literatura sobre a vida. Afinal, o que a poesia faz por nós? É possível que ela faça alguma coisa?

É de grande importância questionarmos o lugar da poesia em uma sociedade cada vez mais guiada por princípios mercadológicos, como produtividade e eficiência. Essas perguntas podem ser respondidas de inúmeras maneiras. Podem, inclusive, se voltar contra quem as formula sob a acusação de que um questionamento semelhante também se revela sujeito ao mesmo pragmatismo que pretende criticar.

Mas o argumento é este: mesmo que a poesia nada queira fazer, ela faz.

A poesia rompe com a colonização de nossos afetos e com o automatismo da língua que usamos para construir nossas relações e nossas interioridades. E se é verdade que a poesia confere outra vida à linguagem, será verdade que a nós, como seres de discurso, também será conferida outra vida.

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O tempo da fruição do poema é ele mesmo um tempo que recuperamos ou roubamos das obrigações que nos escravizam, um ato de pequena rebeldia que quer interromper o ciclo das “flores que se alimentam da acidez das horas”, “da dormência da carne e da aridez do pó”, como a poeta nos diz em “quarenta noites no deserto”.

O que a poesia de Adriana faz por seu leitor é sacudi-lo do lugar comum e da previsibilidade das ideias feitas. A poeta, com seu peculiar modo de expressão, propõe pausas, brinca com a língua, explora suas possibilidades e limites. Constrói mundos ativamente e nos convida a deitar novos olhares sobre aquilo que nos circunda, usando sua palavra poética como guia em uma viagem que é, ao mesmo tempo, interior e exterior. Estar em trânsito é sobretudo isso, caminhar por essas paisagens ora afetivas, ora frias, ora preenchidas pelas contradições que nos constituem, mas que tornam essa experiência de atravessamento única, como em “a-n-a”, que rodopia no meio da rua, enquanto o sujeito poético nos afirma: “tenho uma navalha de afeto / enfiada na minha costela / sangrando alegria / nos becos da noite / – tremo de medo”.

Adriana nos conduz por uma usina que não descansa e que queima vida entre ferrugens, assim como nos mostra jardins suspensos em telhados que desenfeitam as ruas e gente cansada de sonhos que não florescem, embora habitem um mundo que parece uma estufa, como no poema ““fogo-azul-do-fim-do-mundo II”.

Sua dicção precisa é fruto de uma espírito aguçado se debruçando sobre os paradoxos de um mundo cada vez mais complexo, em que o excesso de objetos, imagens e sentidos, produz esvaziamento e solidão.

No “poema n. 1”, Adriana nos diz: “a vida inteira / escrevo o mesmo poema / com os ruídos e silêncios / de uma floresta noturna”. A poeta nos fala da repetição de escrever o mesmo poema como quem tem consciência de que as obsessões nos perseguem uma vida inteira e nos fazem repetir certos caminhos só para serem vistos por olhos que já não são os mesmos.

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E essa experiência de leitura transforma nosso modo de ver, permitindo que possamos nos flagrar ali, junto ao sujeito poético, experimentando as mesmas alturas e as mesmas quedas que ele experimenta. Diversos deslocamentos espaciais nos são propostos, quando afirma: “meu corpo tem a altura do chão”; quando pede: “deixe que teus olhos me vejam / na cidade dos edifícios”; quando nos alerta: “inevitavelmente passamos / de um lugar a outro”.

Mas “TRaNSiTo” também guarda espaço para o lúdico e a delicadeza. E a poeta já nos avisa, desde o começo, que esta é uma declaração de amor aos caminhos, uma declaração de amor a essa busca por outros lugares e outras formas de existir.

O efeito de surpresa está presente quando descobrimos quem é que se aproxima de nós como se quisesse nos fazer confidências aos ouvidos, como lemos em “segredo”. E também está presente em “zéfiro”, quando em uma ferida aberta por um poema jogado na testa crescem oito elefantes.

Somos sujeitos que desejam o que não existe e sonham o impossível. Assim construímos nossas utopias coletivas e individuais, mesmo que sob contingências, como nos lembra o poema “estandarte”: “a luta é livre / mesmo de corpo atado / meu coração cresce”.

O que a poesia de Adriana faz por nós, seus leitores, é nos lembrar de nossas múltiplas existências, daquilo que somos fora da maquinaria automatizada do mundo e dos seus esquemas pragmáticos. É nos lembrar de tudo aquilo que podemos ver, sentir e ser.

Desconstruindo “Zona de Desconforto”, de Lindevania Martins

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Este post de Catálogo de Indisciplinas é muito especial, já que é sobre “Zona de Desconforto”, meu segundo livro de contos.

A ideia é contar um pouco para vocês sobre como foi o processo de escrita do livro e sobre o que ele é. Estou chamando este procedimento de desconstrução porque se enquanto na ficção tradicional o propósito é esconder os artifícios que dão coesão e que estruturam o texto, seja para conferir fluência, seja para conferir naturalidade ao mesmo, este post pretende fazer o inverso.

Escrever “Zona de Desconforto” foi um processo lento que se desenrolou por alguns anos. Atribuo essa demora ao fato de que escrever ficção é parir, ao mesmo tempo, vários sujeitos em períodos distintos de vida. É parir uma jovem, um velho, um alienígena, um cão, cidades inteiras. Então, é preciso um certo tipo de dedicação a fim de nutrir e desenvolver essas vidas.

A maioria dos oito contos do livro são narrados em primeira pessoa e essa foi uma escolha que foi se afirmando em exercícios de tentativa e erro. Em certos contos, a terceira pessoa simplesmente me bloqueava e eu não conseguia escrever. É que o pensamento é um barulho sem fim, indo em todas as direções. Se escolho escrever num registro realista, como representar essa complexidade e essa desordem? Entendi que a primeira pessoa me permitiria, dentro das minhas características, trabalhar melhor as ambiguidades e as contradições que nos atravessam e que eu gostaria de preservar.

Escolher um ponto de vista ou um personagem para narrar implica sempre em se submeter às aberturas e às limitações dessa escolha. E eram as limitações e as aberturas que me preocupavam. Ao criar um personagem à imagem e semelhança das pessoas de carne e osso, lhe podamos muitos dos seus aspectos porque eles não cabem no papel. É sempre um recorte que é mostrado sob uma grande lupa na qual suas imperfeições e virtude são aumentadas porque vistas de muito perto.  E na impossibilidade de retratar a totalidade, talvez as perguntas mais importantes sejam: O que deixar de fora? O que não merece ser visto? O que ficará para sempre na sombra?

Logo se vê que o texto não pode coincidir com a vida em si, em sua brutalidade absoluta, em sua ausência de sentido. Se a vida é puro caos e desordem, o texto precisa de certas doses de coerência, sentido e organização para que se torne compreensível para quem lê, para que não seja a expressão de um idioma solitário e impossível de traduzir. Por outro lado, como nunca se pode dizer tudo, nem escrever tudo, sempre existirão lacunas que serão preenchidas pela imaginação: não do autor, mas de um leitor ativo e engajado.

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Quando penso nos meus personagens, os vejo como frankensteins. Não por qualquer aspecto monstruoso, mas pela origem: construídos pelos meus pedaços, por pedaços de outros, por pedaços de  memória e de imaginação.  Escrever num registro realista também inclui a tarefa de apagar esses rastros, essas costuras de fragmentos tão distintos a fim de dar ilusão de continuidade, a fim de que não sejam apreendidos os limites entre o que é memória e o que é imaginação.

Ricardo Piglia, em suas famosas “Teses sobre o conto”, afirma que o gênero literário, em sua forma clássica, sempre conta conta duas histórias. Seria um jogo no qual o ficcionista oferece ao leitor uma história secreta, cifrada naquele relato mais visível – e disso resulta que uma escrita que não será espontânea, nem inocente. Alguns textos de “Zona de Desconforto” estão sob essa lente. Outros, porém, jogam com o duplo de outra forma.

Posso dizer que os grandes protagonistas de Zona de Desconforto são as relações de dominação e o que elas contém de redução de subjetividade e de exploração do humano. Nesse contexto, sobressaem os relatos de pequenas e grandes insurgências de corpos femininos, de corpos que não se submetem à classificações idealizadas do que seja uma menina, mulher, mãe. Mas também há corpos masculinos transitando nesses ambientes de fronteira: entre os scripts que definem papéis tradicionais e sua busca pessoal por novos modelos de existência.

Quando me perguntam sobre influências ou a qual tradição me filio, penso sempre na minha leitura  errática. Creio que escrevo junto com aquelas mais duros, com os mais crus. E nesse ponto, foi essencial para mim o contato com a literatura de Thomas Benhard e de Ágota Kristóf. Eles me autorizaram a escrever da forma como escrevo sem me sentir inadequada por adotar tal procedimento.

Mas o texto é do mundo e tem uma vida independente de sua origem. Avessa que sou aos sistemas autoritários, entendo que minha forma de interpretar é apenas mais uma.

Para quem me acompanhou até este ponto e está curioso sobre “Zona de Desconforto”, é possível encontrar o livro e ler pedaços dos textos no site da Editora Benfazeja. Basta clicar aqui: Benfazeja

 

A Antibiblioteca de Umberto Eco

“La biblioteca de Babel” Erik Desmazier

 

No conto “A Biblioteca de Babel”, o argentino Jorge Luís Borges nos apresenta uma biblioteca com um acervo infinito. Não por acaso também chamada de “Universo”, ela contém todos os livros do mundo: os que já existem, os livros por vir, os que fazem sentido, os que não fazem sentido, escritos em línguas mortas ou vivas, em idiomas que ainda serão inventados, livros que podem e que não podem ser decifrados.

Em razão do volume infinito dessa vasta coleção, é impossível que em uma única existência humana se consiga alcançar todos os seus volumes. Em razão da quantidade de volumes em línguas ininteligíveis, muitos desses obras permaneceriam intocadas. A Biblioteca de Babel conterá, sempre, uma infinidade de livros que nunca serão lidos.

Com uma existência mais concreta, vários vídeos disponíveis no Youtube nos apresenta um biblioteca que, embora não seja infinita, também é impressionante. Trata-se da biblioteca particular de Umberto Eco, composta por mais de 30.000 volumes.

Nas filmagens (veja aqui), se observa o escritor italiano percorrendo salas e corredores repletos de livros. Um observador pragmático, preocupado com a utilidade dos objetos, perguntaria sobre a capacidade de Eco efetuar a leitura de todos aqueles livros. Um observador com preocupações estéticas, voltaria seu olhar para as possibilidades decorativas de um acervo tão numeroso. Um outro observador, preocupado com o status conferido pela posse de tantos livros, daria um troféu a Eco por ter conseguido se apresentar como um homem tão culto.

Uma biblioteca com 30.000 volumes é quase como um “Universo”, uma Biblioteca de Babel, se considerarmos que esse número não será estanque e tenderá a crescer sempre.

Eco

O escritor Nassim Nicholas Taleb chamou a biblioteca de Eco de Antibiblioteca, citando que o italiano classificava os visitantes de duas formas. Os que tinham uma reação do tipo: “Você já leu tudo isso?”. E os seus preferidos, que compreendiam que uma biblioteca não existia para inflar o ego do seu possuidor, mas para funcionar como uma vasta reserva de conhecimento escrito.

Eco partilhava do entendimento de que livros não lidos eram mais valiosos do que livros lidos. Enquanto livros lidos já haviam se submetido ao crivo da mineração, os livros não lidos eram como um tesouro a ser descoberto, sempre se renovando e sempre desafiando o leitor.

Como na Biblioteca de Babel, muito serão os livros não lidos. O conhecimento completo será sempre impossível. Ambas as bibliotecas conterão sempre algo de inacessível, algo de incompleto.

Então, caro leitor, se você é daqueles que adoram comprar livros e sempre ouve aquelas perguntas zombeteiras: “Por que tanto livro? Você consegue ler tudo isso?”. Sinta-se em paz. Provavelmente você consegue enxergar o privilégio de ter essa fonte de conhecimento ao alcance hipotético de suas mãos e de seu espírito.

“Tive que matar”: Entrevista com Virginia Woolf

V Woolf Editado

Nascida no ano de 1882, época em que o destino das mulheres era o lar, a escritora inglesa Vírginia Woolf, autora de “Mrs. Dalloway”, “Rumo ao Farol” e “Orlando”, sempre esteve muito preocupada com a situação das suas companheiras de gênero. Não é à toa que entre seus ensaios traduzidos para o português se encontram os livros “Um Teto Todo Seu” e “Profissões Para mulheres e Outros Artigos Feministas”.

Catálogo de Indisciplinas aproveita o texto de “Profissões Para mulheres e Outros Artigos Feministas” para fazer uma bela entrevista  com Virginia, retomando um episódio muito comentado de sua carreira literária. Ela faleceu em 1941, mas a entrevista acontece agora, em junho de 2018. Afinal, não importa que nossos corpos não estejam vivos ao mesmo tempo, pois é para isso que serve a escrita, não é? Para permitir que possamos nos encontrar, para permitir que possamos ouvir os mortos e as mortas.

Então, vamos lá!

Catálogo de Indisciplinas: Virginia, no livro “Profissões Para mulheres e Outros Artigos Feministas”, lançado no Brasil pela LPM, você menciona um certo fantasma chamado “Anjo do Lar”. Que história é essa?

Virginia Woolf: Você, Lindevania, que é de uma geração mais jovem e mais feliz, do século XXI, talvez não compreenda bem. Mas “Anjo do Lar” é aquele ideal de mulher que deve sempre se sacrificar, ser simpática e encantadora, sem opinião ou vontade.  Então aconteceu o seguinte! Quando comecei a escrever resenhas, me vi atormentada por  esse fantasma de mulher. Eu escrevia a resenha do livro de um homem famoso e esse fantasma me dizia que, como eu era uma moça, deveria ser meiga e afável, usar as artes e manhas de meu sexo, ser pura  e não deixar ninguém perceber que eu tinha opiniões próprias. Ser esse “Anjo do Lar”, entende?

Catálogo de Indisciplinas:  Entendo, sim! Isso acontece até hoje, não só na época em que você viveu. Continua sendo um empecilho para a autonomia das mulheres. Mas nos conte, como você fez pra se livrar do fantasma?

Virginia Woolf:  Veja só. Tive que pegar o tinteiro e jogar nesse “Anjo do Lar”. Tive que partir mesmo para cima do “Anjo do Lar”, agarrar a garganta e tentar esganar.  E cada vez que eu achava que já tinha acabado com esse fantasma, ele reaparecia e eu tinha  que lidar com ele outra vez. Em vez de estar aprendendo grego ou correndo o mundo em busca de aventuras, lá estava eu, brigando com ele de novo. No fim, tive que matar! Foi difícil, demorado, mas  consegui e me orgulho disso.

Catálogo de Indisciplinas: Conseguiu matar de uma vez por todas?

Virginia Woolf:  Sim, claro!

Catálogo de Indisciplinas: Você poderia ter sido presa!

Virginia Woolf: Ah, mas se me levassem a um Tribunal, eu teria um excelente argumento.  Legítima defesa! Tive que fazer isso porque segundo esse ideal do “Anjo do Lar”, as mulheres não podem falar o que pensam sobre as relações humanas, sobre a moral e o sexo,  com liberdade e franqueza. Têm que agradar, dissimular, mentir. Veja só! Foi uma dificuldade imensa realizar essa morte porque a natureza fictícia do fantasma lhe ajudou muito. É muito mais difícil matar algo sem corpo do que uma realidade corpórea. Mas se eu não matasse o “Anjo do Lar”, o “Anjo do Lar” me mataria. Ele arrancaria o coração da minha escrita!

Catálogo de Indisciplinas: Você me convenceu. Tinha que matar mesmo! E depois que o Anjo morreu, o que ficou?

Virginia Woolf:  Ficou… algo simples e comum. Uma jovem num quarto com um tinteiro. Uma moça que por ter se livrado da falsidade, tinha que ser ela mesma. E isso é complicado, ser você mesma. Afinal, o que é uma mulher?  Eu juro que não sei.  Duvido que vocês saibam! E nem podem saber antes que as mulheres possam se expressar em todas as artes  e profissões abertas às capacidades humanas.

Catálogo de Indisciplinas: E você acha que as mulheres podem se expressar em todas as artes, em todas as profissões?

Virginia Woolf:  Claro que podemos! Mas há os fantasmas. Por todos os lugares há diversos tipos de fantasmas! Ainda vai levar muito tempo até que uma mulher possa escrever um livro sem ter que matar um fantasma, remover uma rocha ou algo assim, pois são muitos os obstáculos nos caminhos das mulheres. Agora, imagina! Se isso acontece na literatura, imagina  nas novas profissões que as mulheres estão começando a experimentar. Por isso é muito importante discutir  e definir essas questões, discutir os fins e as metas pelos quais lutamos, para que a gente possa combater esses obstáculos tremendos.

Catálogo de Indisciplinas: Estamos chegando ao fim da entrevista, Virginia. Quer dar algum recado  especial aos nossos leitores?

Virginia Woolf:  Quero, sim! Para as mulheres. Olhem bem! Vocês estão, com muito esforço e trabalho, pagando o aluguel e ganhando seu dinheirinho, tendo “um teto todo seu” em lugares que antes eram só dos homens. Mas essa liberdade é só o começo! Com quem será dividida sua casa? E em que termos? Pela primeira vez na história, vocês já podem fazer essas perguntas e já podem decidir quais serão as respostas. Pensem bem sobre isso!

Catálogo de Indisciplinas: Virginia, muito obrigada. Como sempre, você arrasou e suas observações nos tornaram mais atentos para essas complexas questões de gênero. Catálogo de Indisciplinas adorou falar com você e vai te convidar outras vezes.

Virginia Woolf:  De nada, querida. O prazer foi todo meu! Mas me diga uma coisa. Você já matou seu fantasminha de hoje?

Cinemagraph

Inventado em fins do século XIX, o cinematógrafo era um equipamento que servia para captação de imagens e projeção das mesmas. Era a fotografia em movimento.

O XXI, com seus aparatos tecnológicos e sua nostalgia, mistura mobilidade e fixidez. Tem-se o cinemágrafo ou cinemagraph: fotos estáticas com movimento e beleza. Consiste na reunião, na mesma imagem, da imobilidade da fotografia com a animação de um ou outro elemento.  O uso do termo cinemagraph é atribuído aos fotógrafos Kevin Burg e Jamie Beck.

Há quem diga que nessa lista de estimulantes visuais também se encontram as gifs animadas e que estas não diferem tanto assim do cinemagraph. Outros discordam e apontam a superioridade técnica do cinemagraph sobre as primeiras. Mais alguns lembram que já existem aplicativos que conseguem movimentar regiões específicas de imagens estáticas, possibilitando que qualquer um possa criar gifs ou cinemagraph.

“Catálogo de indisciplinas”, que não vai colocar lenha em nenhum fogueira, começa 2020 com a poesia das cinemagraph  que vemos a seguir:

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Hummmm…

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Shuuuuuummm.

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Ora, ora.

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Clink, clink.

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Oaaaahh…

 

A Arte da Fuga

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Catálogo de Indisciplinas adora apontar ambiguidades para depois desfazê-las. Por que este post seria diferente?

Ao tratar da arte da fuga, Catálogo de Indisciplinas poderia estar falando sobre música clássica. Afinal, “fuga” é um estilo de composição no qual se tecem variações a partir de uma linha melódica única, estilo no qual Bach foi um dos mestres.

Catálogo de Indisciplinas, tratando da arte da fuga, poderia estar falando, ainda, de ilusionimo e do extraordinário Harry Houdini. Afinal, o húngaro, grande ilusionista e escapista, ficou famoso por realizar fugas espetaculares de lugares como celas de torturas, barris cheios de águas, caixões, camisas de força, etc.

Harry Houdini

Catálogo de Indisciplinas poderia estar falando, também, de algo mais trivial, que se torna cada vez mais comum entre nós, reles mortais distantes de Bach e Houdini: os anos sabáticos. O ano sabático é o tempo que uma pessoa reserva para se dedicar a projetos pessoais, distantes do seu trabalho convencional ou de sua vida cotidiana. A mulher que escreve os posts de Catálogo de Indisciplinas, por exemplo, vive sonhando com anos sabáticos. Enquanto uns apenas sonham, outros realizam. A escritora Elizabeth Gilbert é uma dessas que jamais ficou só nos sonhos. No best seller “Comer, Rezar, Amar”, que mais tarde se transformou em filme com Júlia Roberts, ela narra sua jornada de fuga afastamento do seu mundinho conhecido e descoberta de novas realidades, deixando para trás um período grave de crise existencial.

Fugir, fugir, fugir… não é um sonho apenas para os hóspedes dos presídios. Afinal, quem nunca quis?

A fuga, que tanto pode significar conformismo quanto inconformismo, contém em si a esperança de que se entre em contato com outro nível de realidade e experiência, seja ela o entorpecimento ou uma lucidez ampliada. Fugir da vida real, fugir da vida virtual, fugir dos problemas, fugir da futilidade ou do excesso de seriedade, fugir do tédio ou do excesso de agitação, fugir das cidades pequenas e das grandes cidades. Há possibilidades de fugas para todos os gostos e bolsos, pois há quem fuja para Paris e quem fuja para o interior do Maranhão. Há quem fuja para o álcool e as drogas. Há quem fuja para a televisão e as viciantes séries da Netflix. Há quem fuja para o chocolate e há quem fuja para a academia. Há quem fuja para o sexo e quem fuja para o celibato. Há quem fuja para os livros e há quem fuja deles.

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Como o leitor já adivinhou, ao inventar de falar de fugas, Catálogo de Indisciplinas quer mesmo é se intrometer a falar de literatura, cinema, e do lugar que, através dessas artes, ocupamos no mundo e dentro de nós mesmos. E se a ideia é falar de livros e filmes, voltemos a eles!

São várias as obras que exploram a ideia de que a vida em  sociedade nos afasta daquilo que somos em nome da preservação de outros valores, que não os nossos, tidos por mais corretos ou desejáveis.

Em 1854, o filósofo inglês Henry David Thoreau, autor do famoso “Desobediência Civil”, publicou uma obra que trazia o relato de um experimento social planejado e executado por ele mesmo. Um experimento de solidão chamado “Walden”, que também pode ser considerado um tratado sobre a emancipação do indivíduo ante o coletivo, narrando experiência de afastamento de Thoreau da sociedade: uma verdadeira fuga do mundo para dentro de si mesmo através dessa experiência de isolamento.

Walden é o nome de um lago na zona rural da cidade Concord, em cujos arredores Thoreu viveu sozinho por dois anos e dois meses, enquanto escrevia seu livro, no qual tece duras críticas ao consumismo e a exploração do ser humano por outro ser humano, e elogia a solidão, como nessa passagem: “Acho saudável ficar sozinho a maior parte do tempo. Estar em companhia, mesmo a melhor delas, logo se torna enfadonho e dispersivo. Gosto de ficar sozinho. Nunca encontrei uma companhia mais companheira que a solidão”. Por favor, não pensem que Thoreau é um estranho ou um detestável misantropo. Afinal, quais de nós nunca teve desejos de isolamento em algum momento de sua vida?

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Mais de um século depois, Walden se tornou o livro de cabeceira de um jovem interessado em se afastar da civilização e experimentar uma vida mais simples. Christopher Johnson McCandless (EUA, 1968-1992) era um rapaz de classe média alta, recém formado em história e antropologia, que doou os 24 mil dólares que tinha em sua conta bancária para instituições de caridade e e sumiu, sem informar sua família ou amigos, partindo para grande aventura de sua vida. Em sua bagagem, o Walden, de Henry David Thoreau.

Um dos planos do jovem, inspirado por Walden, era o de se afastar de sua rotina para um período de contemplação solitária. Isso mesmo: um ano sabático. Abandonou seu carro na estrada após um acidente, queimou o dinheiro que ainda tinha e adotou o nome de Alexander Supertramp. Por dois anos perambulou pelos Estados Unidos e teve vários trabalhos temporários, até chegar ao seu destino final, o Alaska, onde queria estar em contato com a natureza pura e onde veio a morrer em virtude mesmo do seu isolamento.

Ahistória de Christopher se transfornou em livro, publicado em 1996, por Jonh Krakauer, e depois em filme, pelas mão de Sean Penn, lançado em 2007. Ambos os trabalhos, no Brasil, tiveram o título de “Na Natureza Selvagem” e Catálogo de Indisciplinas recomenda fortemente que sejam lidos e assistidos.

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Em outro filme, a arte da fuga é exercitada coletivamente, de forma sorrateira e com muita engenhosidade. Trata-se do filme “A Vila” (EUA, 2004, direção de Night Shyamalan), no qual o medo da violência faz com que um grupo de indivíduos levem a um extremo o projeto de Henry David Thoreau, se afastando da civilização não apenas no que se refere ao aspecto físico, mas também sob um aspecto cultural, deixando para trás avanços médicos e tecnológicos para viverem como se estivessem no século XIX. Não tão idealistas quanto Thoreau, com o intuito de criarem uma sociedade pacífica, esses escapistas produzem mais medo, totalitarismo, infantilização e repressões, condenando gerações futuras, que não puderam optar por esse modo de vida, a repetir os passos daqueles que efetivamente tiveram o direito de escolha.

Se toda fuga pressupõe a promessa de que esse local outro para o qual nos dirigimos estará isento das ameaças que nos fazem querer escapar, essa promessa nunca conterá em si qualquer semente de certeza. Assim como no filme “A Vila”, em que aquilo que deflagrou a fuga acaba por atingir os moradores dos bucólicos bosques nos quais buscaram refúgio, isso mesmo do que se foge, pode nos alcançar em qualquer lugar.

Mas hoje, não, leitores de Catálogo de Indisciplinas! Hoje todas as nossas fugas terão o maior sucesso!

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Créditos: Intervenções urbanas de Daan Botlek

Sophie Calle e a vulnerabilidade de existir

 

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Existir é ser vulnerável. É estar exposto à morte, à doença, à violência, à solidão e à rejeição. Muitos de nós tem optado por ignorar e esconder essa vulnerabilidade, principalmente aos olhos alheios.

Outros, porém, tem escolhido mostrar a todos justamente essas fraturas. Na literatura, cada vez tem se falado com mais frequência em autoficção, gênero que mistura autobiografia e com a escrita fictícia. Alguns leitores costumam perguntar a certos autores: “Essa história é sobre você?”. Paul Auster e Enrique Vila-Matas poderiam responder: “Também!”, pois estão entre os muitos que tem explorado esse estilo de narrativa.

Sophie Calle (Paris, 1953) é outra artista que não teria o menor embaraço em responder afirmativamente. Ela é uma dessas e desses artistas que transformaram em arte suas próprias experiências pessoais. Suas obras percorrem três eixos principais: vulnerabilidade, identidade e intimidade. A artista já explorou em seus trabalhos seu divórcio, a morte de sua mãe e de seu gato, uma cicatriz na perna esquerda, suas fantasias sexuais, suas imperfeições corrigidas pelos avós, etc. Mas também já explorou a identidade e a intimidade de terceiros, amigos, parentes ou estranhos: já perseguiu um homem em Venice, fotografando sua rotina (veja aqui), e já pediu que sua mãe contratasse um detetive para segui-la que, por sua vez, também foi seguido por um amigo de Sophie (veja aqui), propondo em ambos os casos um jogo de reconstrução de olhares e identidades. A esse jogo especial com o detetive, Paul Auster, cuja obra Leviatã possui uma personagem inspirada em Calle, chamou de “dramaturgia do olho que olha enquanto é olhado”.

Em um dos seu trabalhos mais famosos, Sophie Calle retoma uma carta que lhe foi enviada pelo então namorado, o escritor Gregoire Boullier. Na carta, remetida através de e-mail em abril de 2004, Gregoire Boullier relembra duas regras impostas por ela no início do relacionamento de ambos: uma, que ele deveria deixar de ver três outras mulheres, pois ela não queria ser a quarta namorada; duas, que no dia que deixassem de ser amantes, eles não deveriam mais se ver. Contrariando a primeira regra, Gregoire Boullier conta que voltou a ver as três outras mulheres. Depois diz que sabe bem o que isso significa e que é com pesar que cumpre a vontade dela de que não se vejam mais. Em momento algum diz diretamente que a relação acabou e termina a carta, que você pode ler aqui, com um conselho: “Queria que as coisas tivessem sido diferentes. Cuide de você”.

Photo, Liz Hafalia, The Chronicle, Sophie calle

Sophie transformou sua dor e a rejeição em exposição de arte.

O teor da carta enviada pelo ex-namorado havia deixado Sophie surpresa e confusa: naquele mesmo dia o namorado publlicava um livro que era dedicado a ela e que falava sobre a relação de ambos; não compreendia se aquilo era um rompimento definitivo; não sabia como responder o e-mail e o que dizer caso encontrasse Boullier. Enviou a carta para um amiga em busca de ajuda. Quando a amiga começou a descrever a carta com suas próprias palavras, Sophie teve a ideia de mandá-la a outras mulheres. Já pensando na exposição, enviou a carta para mais de cem mulheres, de profissões diferentres, como: psicanalista, revisora de texto, vidente, juíza, jogadora de xadrez, historiadora, professora de educação infantil, diplomata, assistente social penintenciária, contafora, compositora, etc., pedindo a cada uma que interpretasse a mensagem de acordo com sua profissão. A própria mãe de Sophie também interpretou a carta, produzindo estas considerações:

Linda, famosa e inteligente como você é, logo você encontrará alguém melhor. Falando em “levar o fora”, lembro de quando eu era mais nova e tive que lidar com “eu não mereço você”. Depois, eu tive mágoas piores, mas eu me arrependo dos meus arrependimentos. Apesar da humilhação e da raiva, havia sempre uma necessidade de tirar o melhor dessa situação, o que eu certamente fiz. Você deixa, você é deixado, esse é o nome do jogo, e para você esse rompimento pode ser fonte de inspiração para uma nova obra de arte – estou errada? Amo você, sua mãe”.

Você pode ler todas as interpretações aqui.

Vista pela primeira vez em Veneza, em 2007, a exposição “Cuide de Você” se tornou mundialmente famosa. Sophie Calle e o ex-namorado, Gregoire Boullier, se encontraram no Brasil em julho de 2009, na Flip de Paraty, numa mesa na qual discutiram questões relacionadas à essa mistura entre fazer artístico e experiências pessoais. Como não deveria deixar de si, voltaram á discutir a carta.

Findamos o post com as próprias palavras de Sophie Calle sobre seu trabalho: “Meu trabalho não tem nada a ver com intimidade. Quando uso minha vida, não é minha vida, é um trabalho pendurado na parede. Algumas coisas que me acontecem eu uso como um motor para esse ou aquele projeto, mas isso não significa para mim encenar intimidade, mas a poesia que vem de coisas banais, do que acontece com todos. Eu tento lutar com uma parede e fazer exposições. Não estou interessada em quanta intimidade, ou ausência, está no meu trabalho. Esse é o trabalho do crítico. Essa é a sua língua, não a minha”. (Veja aqui)

E você? Como interpretaria a carta de Gregoire Boullier para Sophie Callie? Conte pra gente! Leia a íntegra da carta aqui .

Seguindo a Correnteza

 

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O longa “Corpo Elétrico” (Brasil, 2017, direção de Marcelo Caetano) tem sido muito aplaudido pela crítica, gerando uma enxurrada de apreciações positivas. Porque toda unanimidade é burra, Catálogo de Indisciplinas traça um retrato indisciplinado de “Corpo Elétrico”, talvez a primeira resenha não tão elogiosa que o leitor encontrará.

Primeiro, façamos um recorte importante. Embora enquadrado como filme de temática LGBT, “Corpo Elétrico” é apenas GT, pois não mostra lésbicas, nem bissexuais. Importante fazer essa menção porque “LGBT” carrega uma aparente homogeneidade entre os termos que invisibiliza categorias internas de opressão. Corpo elétrico, portanto, se situa no mundo masculino, e apesar da gama extensa de personagens, mulheres estão apenas no pano de fundo.

“Corpo Elétrico”, que em alguns momentos lembra um documentário, acompanha o cotidiano de Elias (Kelner Macedo), imigrante nordestino que trabalha numa fábrica de roupas como estilista. Elias é um cara gente boa e obediente que aceita tudo que lhe chega: seja sexo ou trabalho. Sempre disponível para tudo e todos. Aliás, o núcleo dos amigos e amantes de Elias são todos muito parecidos entre si, seguindo o perfil de Elias: gente boa a fim de diversão. Os personagens não tem maiores aspirações. O protagonista não tem maiores aspirações. Vive o que lhe acontece.

Os personagens gays estão sempre exercitando o poliamor, sem crises de ciúmes. Em entrevistas sobre o filme, o direito Marcelo Caetano explicou que fez a opção de não falar no filme sobre amor romãntico e seu conflitos, enfatizando formas de amar mais generosas e mais livres. Contudo, no filme, Elias e seus amantes parecem estar todos na mesma categoria de afetos. Ao mesmo tempo que se ligam a todos, não se ligam a ninguém, não estabelecendo nenhuma conexão mais profunda com este ou aquele ser humano.

Se o filme foge de estereótipos? Lembremos que quando se fala de repressão sexual, se fala de mulheres e que a homossexualidade masculina sempre esteve marcada pelo estereótipo da promiscuidade. Então, o filme reforça esse estereótipo. Num ambiente em que filmes com temática LGBT têm sido marcados pelo tom de denúncia, o filme escapa a esse perfil. E escapa porque os personagens todos circulam em ambientes conhecidos e amigáveis a LGBTs. E escapa porque os personagens são práticos, sem qualquer espaço para inquietação ou questionamentos sobre o sentido das suas ações. Só importa o presente imediato e não há qualquer reflexão mais profunda.

Nas muitas cenas de sexo, com exposição de corpos, se pode pensar que os persongens exprimentam uma liberdade extremada. Contudo, logo se vê que eles exercitam essa liberdade sexual como contraponto ao trabalho. A sexualidade funciona como uma vávula de escape. Escapam da rigidez, das horas extras e da rotina do trabalho pelo prazer exercitado nos intervalos da atividade na fábrica de roupas. E estabelecem uma nova rotina: essa mesma de escapar através da festa e do sexo da monotonia  e da exaustão do trabalho. O filme mostra essa repetição sem fim: trabalho e festa ou sexo; trabalho de novo ou festa e sexo de novo. Não há rebeldia. Os corpos que habitam “Corpo Elétrico” são obedientes e bons trabalhadores. A eletricidade dos corpos só ocorre nos momentos oportunos e bem delimitados: nas horas de descanso do trabalho em que, portanto, não ameaçam a função econômica de cada um na sociedade.

Corpo Elétrico se desenrola num universo à parte que beira à artificialidade, livre de preconceitos e opressão. O filme apaga quase todos os confllitos e as tensões de se conviver. O protagonista, por exemplo, não sofre preconceito por ser gay, nem por ser nordestino. Os negros não sofrem preconceito por serem negros. Contudo, como em várias outras produções de ficção, “Corpo Elétrico” se trai ao confinar os negros às periferias. Quando vemos os núcleos elitizados, como os empregadores de Elias, ou como o rico amigo/amante de Elias, este são compostos apenas por brancos.

Os poucos conflitos mostrados pelo filme são tênues, ligados à opressão de classe dentro do ambiente de trabalho, como quando uma funcionária reclama que por conta das horas extras dormirá pouco e terá que acordar muito cedo no dia seguinte. Ou quando o empregador de Elias reprova sua aproximação com os funcionários menos graduados da fábrica. Elias não sabe o que dizer e mudo fica. Afinal, ele apenas segue a correnteza.

Há quem diga que o filme é uma celebração da vida. Onde muitos vêem felicidade, porém, se pode ver apatia e marasmo. Onde muitos vêem liberdade extremada, se pode ver escapismo regado a funk e pagode, trilha sonora principal do filme.

Podemos ficar pensando que talvez “a moral” do filme seja a de que sabem viver aqueles que não pensam sobre o que é vida e não se preocupam ou se angustiam com aquela antiga pergunta: qual o sentido da vida?

No mais, o filme tem uma excelente fotografia e é sempre ver bom ver diversidade na tela, não só referente à orientação sexual e identidade de gênero, mas também racial.

“Sob a Pele”: alienígenas, mulheres e jogos de imitação

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No filme Sob a Pele (Grã Bretanha e EUA, 2013), dirigido por Jonathan Glazer e baseado em livro de Michel Faber, se falou obsessivamente sobre o corpo e o rosto da protagonista Scarlett Johansson,  contrapondo excesso de imagens e escassez de falas, principalmente levando em conta que os primeiros reais diálogos do longa só acontecem depois dos dez primeiros minutos de sua exibição.

Mas apesar dos cabelos exuberantes, do batom vermelho, das roupas provocantes e dos seios fartos evidenciados em algumas cenas, interpreta Scarlett uma mulher?

Em pouco tempo percebemos que a personagem principal é um/a ser alienígena que usa a pele da linda atriz para atrair machos que lhe servirão, literalmente, de alimento e combustível – pois a função da comida é produzir energia. Mas quem poderá afirmar que a criatura seria homem ou mulher? Afinal, teriam esses alienígenas pênis e vaginas? E se reproduziriam de forma sexuada? Carregariam outros de sua espécie dentro de seus próprios corpos?

E como pensam os alienígenas, como sentem? Quais os critérios que guiam suas escolhas? Se são tão diferentes do que somos, o que deveria nos fazer crer que são valores semelhantes aos nossos que os movem? E por que deveríamos supor que numa sociedade alienígena – espelhando a nossa própria sociedade, também haveria uma organização por gênero, por sexo, que determinaria as ações dos indivíduos de acordo com o tipo de órgão sexual que carrega entre as pernas?

É por conta de todos esses questionamentos que erramos ao tomar Scarlett, no filme de Glazer, por mulher. Não devemos perder de vista o fato de que provavelmente não exista em sua sociedade o que conhecemos por homem ou por mulher. À moda do jogo da imitação de Alan Turing, em que um software imitava um ser humano, desafiando um outro ser humano real a descobrir onde estava a máquina e onde estava o humano, Scarlett interpreta um ser que apenas imita uma mulher. Querer determinar a esse ser alienígena um identidade feminina ou masculina é querer forçar nossos binarismos sobre mundos cujas leis desconhecemos por completo.

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Antes, o que a atriz representa é um/a imigrante de uma civilização muito distinta da nossa, um/a usuárix de uma forma aleatória que lhe permitirá melhor executar as tarefas que lhe foram propostas (no livro de Faber, ele/ela é funcionário de uma fábrica interplanetária de alimentos, onde a carne humana é uma iguaria valiosa). Assim, a aparência de mulher sexualmente disponível e convidativa que utiliza, antes de revelar sua identidade de gênero, revela apenas que compreende algo de nossa sociedade e por isso a escolheu como instrumento necessário para fisgar corpos de homens ávidos por um sexo fácil e gostoso, mas que o invés disso terão… (deixemos para lá! Não vamos antecipar as surpresas do filme!).

Contudo, num filme tão aberto a interpretações (há quem diga que se trata de uma metáfora à imigração), podemos apostar que esse ser alienígena não fez a lição de casa como deveria: não estudou o suficiente para garantir um vocabulário mais rico, como denuncia a monotonia das falas de Scarlett, principalmente quando não está mais em sua caçada e pode abandonar a sua coleçãode  frases feitas. Também não estudou o suficiente para entender o conceito de beleza, como revelam elogios rasgados endereçados a um jovem cuja aparência em nada corresponde aos padrões de beleza vigentes, provocando risinhos zombeteiros em plateias politicamente incorretas. Mas o que é pior de tudo: não estudou o suficiente sobre a relação entre homens e mulheres para garantir a própria segurança física, como descobrimos no decorrer do filme.

E é aqui que o tiro sai pela culatra.

Sem querer apresentar mais um spoiler, entre o rol de coisas em relação às quais o/a alienígena cometeu falhas na assimilação, devemos incluir – com certeza, os riscos aos quais se expõe ao escolher para sua atividade predatória um disfarce feminino num planeta em que mulheres são vítimas preferenciais de vários tipos de violência. Se na primeira parte do filme é o alienígena que se impõe, objetificando os humanos machos recolhidos em estradas solitárias, na segunda parte da película assistimos uma reviravolta – e é o alienígena que é objetificado ao ser erroneamente tomado por mulher.

Erramos ainda, se supomos que a criatura só é violentada porque possui o rosto de boneca e o corpo tão voluptuoso quanto o de Scarlett Johansson. Esse ser é violentado porque seu aspecto externo imita a aparência em seus aspectos gerais de uma mulher, independente da categoria na qual possam ser classificados seus atributos estéticos. E esse ser descobre, da pior forma possível, o que é carregar, sobre a sua, essa outra pele.