A Arte da Fuga

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Catálogo de Indisciplinas adora apontar ambiguidades para depois desfazê-las. Por que este post seria diferente?

Ao tratar da arte da fuga, Catálogo de Indisciplinas poderia estar falando sobre música clássica. Afinal, “fuga” é um estilo de composição no qual se tecem variações a partir de uma linha melódica única, estilo no qual Bach foi um dos mestres.

Catálogo de Indisciplinas, tratando da arte da fuga, poderia estar falando, ainda, de ilusionimo e do extraordinário Harry Houdini. Afinal, o húngaro, grande ilusionista e escapista, ficou famoso por realizar fugas espetaculares de lugares como celas de torturas, barris cheios de águas, caixões, camisas de força, etc.

Harry Houdini

Catálogo de Indisciplinas poderia estar falando, também, de algo mais trivial, que se torna cada vez mais comum entre nós, reles mortais distantes de Bach e Houdini: os anos sabáticos. O ano sabático é o tempo que uma pessoa reserva para se dedicar a projetos pessoais, distantes do seu trabalho convencional ou de sua vida cotidiana. A mulher que escreve os posts de Catálogo de Indisciplinas, por exemplo, vive sonhando com anos sabáticos. Enquanto uns apenas sonham, outros realizam. A escritora Elizabeth Gilbert é uma dessas que jamais ficou só nos sonhos. No best seller “Comer, Rezar, Amar”, que mais tarde se transformou em filme com Júlia Roberts, ela narra sua jornada de fuga afastamento do seu mundinho conhecido e descoberta de novas realidades, deixando para trás um período grave de crise existencial.

Fugir, fugir, fugir… não é um sonho apenas para os hóspedes dos presídios. Afinal, quem nunca quis?

A fuga, que tanto pode significar conformismo quanto inconformismo, contém em si a esperança de que se entre em contato com outro nível de realidade e experiência, seja ela o entorpecimento ou uma lucidez ampliada. Fugir da vida real, fugir da vida virtual, fugir dos problemas, fugir da futilidade ou do excesso de seriedade, fugir do tédio ou do excesso de agitação, fugir das cidades pequenas e das grandes cidades. Há possibilidades de fugas para todos os gostos e bolsos, pois há quem fuja para Paris e quem fuja para o interior do Maranhão. Há quem fuja para o álcool e as drogas. Há quem fuja para a televisão e as viciantes séries da Netflix. Há quem fuja para o chocolate e há quem fuja para a academia. Há quem fuja para o sexo e quem fuja para o celibato. Há quem fuja para os livros e há quem fuja deles.

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Como o leitor já adivinhou, ao inventar de falar de fugas, Catálogo de Indisciplinas quer mesmo é se intrometer a falar de literatura, cinema, e do lugar que, através dessas artes, ocupamos no mundo e dentro de nós mesmos. E se a ideia é falar de livros e filmes, voltemos a eles!

São várias as obras que exploram a ideia de que a vida em  sociedade nos afasta daquilo que somos em nome da preservação de outros valores, que não os nossos, tidos por mais corretos ou desejáveis.

Em 1854, o filósofo inglês Henry David Thoreau, autor do famoso “Desobediência Civil”, publicou uma obra que trazia o relato de um experimento social planejado e executado por ele mesmo. Um experimento de solidão chamado “Walden”, que também pode ser considerado um tratado sobre a emancipação do indivíduo ante o coletivo, narrando experiência de afastamento de Thoreau da sociedade: uma verdadeira fuga do mundo para dentro de si mesmo através dessa experiência de isolamento.

Walden é o nome de um lago na zona rural da cidade Concord, em cujos arredores Thoreu viveu sozinho por dois anos e dois meses, enquanto escrevia seu livro, no qual tece duras críticas ao consumismo e a exploração do ser humano por outro ser humano, e elogia a solidão, como nessa passagem: “Acho saudável ficar sozinho a maior parte do tempo. Estar em companhia, mesmo a melhor delas, logo se torna enfadonho e dispersivo. Gosto de ficar sozinho. Nunca encontrei uma companhia mais companheira que a solidão”. Por favor, não pensem que Thoreau é um estranho ou um detestável misantropo. Afinal, quais de nós nunca teve desejos de isolamento em algum momento de sua vida?

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Mais de um século depois, Walden se tornou o livro de cabeceira de um jovem interessado em se afastar da civilização e experimentar uma vida mais simples. Christopher Johnson McCandless (EUA, 1968-1992) era um rapaz de classe média alta, recém formado em história e antropologia, que doou os 24 mil dólares que tinha em sua conta bancária para instituições de caridade e e sumiu, sem informar sua família ou amigos, partindo para grande aventura de sua vida. Em sua bagagem, o Walden, de Henry David Thoreau.

Um dos planos do jovem, inspirado por Walden, era o de se afastar de sua rotina para um período de contemplação solitária. Isso mesmo: um ano sabático. Abandonou seu carro na estrada após um acidente, queimou o dinheiro que ainda tinha e adotou o nome de Alexander Supertramp. Por dois anos perambulou pelos Estados Unidos e teve vários trabalhos temporários, até chegar ao seu destino final, o Alaska, onde queria estar em contato com a natureza pura e onde veio a morrer em virtude mesmo do seu isolamento.

Ahistória de Christopher se transfornou em livro, publicado em 1996, por Jonh Krakauer, e depois em filme, pelas mão de Sean Penn, lançado em 2007. Ambos os trabalhos, no Brasil, tiveram o título de “Na Natureza Selvagem” e Catálogo de Indisciplinas recomenda fortemente que sejam lidos e assistidos.

The-Village

Em outro filme, a arte da fuga é exercitada coletivamente, de forma sorrateira e com muita engenhosidade. Trata-se do filme “A Vila” (EUA, 2004, direção de Night Shyamalan), no qual o medo da violência faz com que um grupo de indivíduos levem a um extremo o projeto de Henry David Thoreau, se afastando da civilização não apenas no que se refere ao aspecto físico, mas também sob um aspecto cultural, deixando para trás avanços médicos e tecnológicos para viverem como se estivessem no século XIX. Não tão idealistas quanto Thoreau, com o intuito de criarem uma sociedade pacífica, esses escapistas produzem mais medo, totalitarismo, infantilização e repressões, condenando gerações futuras, que não puderam optar por esse modo de vida, a repetir os passos daqueles que efetivamente tiveram o direito de escolha.

Se toda fuga pressupõe a promessa de que esse local outro para o qual nos dirigimos estará isento das ameaças que nos fazem querer escapar, essa promessa nunca conterá em si qualquer semente de certeza. Assim como no filme “A Vila”, em que aquilo que deflagrou a fuga acaba por atingir os moradores dos bucólicos bosques nos quais buscaram refúgio, isso mesmo do que se foge, pode nos alcançar em qualquer lugar.

Mas hoje, não, leitores de Catálogo de Indisciplinas! Hoje todas as nossas fugas terão o maior sucesso!

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Créditos: Intervenções urbanas de Daan Botlek

Desambiguação: Freud

Lindevania Martins

Sigmund Freud, o avó de Lucien.

Sigmund Freud é célebre. Como o são todos os pais: Hipócrates, o pai da medicina; os irmãos Lumiére, pais do cinema; Santos Dummont, pai da aviaçao.  Freud é o pai da psicanálise, pelo que tem um lugar especial na cultura ocidental. Nascido na Áustria em 1856, desenvolveu teorias polêmicas e originais que lançaram uma nova luz sobre o conhecimento do homem.

Mais Freud também é avó. Menos famoso, mais ainda célebre, é seu neto Lucien.  Construtor de uma formidável e sólida obra que, por outras vias, muito tem a dizer sobre o homem.

Enquanto  Sigmund Freud fez da escrita, e portanto,  do texto liner,  ferramenta e suporte para  a visibilização e divulgação  de suas idéias, Lucien Freud usou a imagem, e portanto, a superfície, o plano, para fazê-lo.


Minha mãe conta que minha primeira palavra foi 'alleine', que significa sozinho. Deixe-me sozinho". Lucien Freud.

As teorias do primeiro Freud  pretendiam explicitar o homem, realizando, como todas as teorias, a intermediação entre o homem e outro homem, entre um homem e ele mesmo.

As imagens também produzem tal intermediação que ocorre, porém, através de processo distinto. Afinal, o escrito leva à imagem e a imagem, por sua vez, remete a um texto.


Lucien Feud

"Girl With a Dog" , Lucien Feud, 1952.

Contemporâneo de Francis Bacon, de quem foi amigo íntimo, ele talvez seja  o último grande representante de uma linhagem específica de artistas plásticos: figurativistas.

O figurativismo, que  se caraceteriza pela representaçao do objeto em formas reconhecíveis: como vemos  o objeto; como sabemo que ele é, inclusive naquilo que o olho não capta; através da sua geoemetria.  A partir do século XX , o figurativismo entra em crise e se vê  dividindo espaço com novas formas de representação do real, de conceitos, do irreal.

Mais jovem que Paul Klee, Marcel Duchamp e Wassily Kandisnki,  que instauraram grandes rupturas na arte, e estando mesmo no entorno dessas rupturas, Lucien optou por seguir regras mais tradicionais.


Lucien Freud

"Large Interior", Lucien Freud, 1976.

Apesar do estilo tradicional,  a obra de Lucien Freud é extremamente pessoal, o que caracteriza todo grande artista.  Suas telas transmitem intensidade e ao mesmo tempo expõem a fragilidade dos corpos humanos. O uso de cores é preciso, as pinceladas fortes.

Lucien pintou amigos, familiares. Inclusive as filhas nuas. É acusado de enfeiar seus modelos, deixando a todos mais feios que na realidade, tendo feito isto inclusive consigo mesmo, em auto-retrato, bem como com a Rainha Elizabete, no ano 2000, cujas feições teriam sido brutalizadas. Um milionário teria destruído uma obra encomendada,  por ter se achado muito feio  no retrato de Lucien.


"Naked Girl Asleep", Lucien Freud, 1968. "O fim da pintura é este: captar para a arte uma experiência em carne viva". (Frank Auerbach)

A maioria das obras de Lucien Freud se encontram  nas mãos de colecionadores particulares. Ano passado, uma tela de Freud foi arrematad em leilão por 34 milhões de dólares, batendo o record de preço por artistas vivos.

Lucien nasceu em Berlim, em 1922. No entanto, cedo mudou-se para Londres. Vive lá até hoje. Adquirido a cidadania britânica em 1939. Fiel a seu estilo  artístico e ao temperamento reservado, continua trabalhando e produzindo, sendo reconhecido como um dos artistas mais importantes da atualidade.

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Para mais obras de Lucien Freud:

Museum Syndicate:  http://www.museumsyndicate.com/item.php?item=4526

Desambiguação: Francis Bacon

Lindevania Martins

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Bacon, o filósofo

Em maior ou menor medida, todos já devem ter ouvido falar de Francis Bacon., o filósofo, político e ensaísta  inglês do século XVI. Considerado fundador da ciência moderna, Bacon sempre fez parte dos currículos das escolas secundárias, ainda que vagamente. Pelo menos, na minha escola, no interior do Maranhão, quando estudávamos o Renascimento.

Criticando Aristóteles e a Escolástica, Bacon  acreditava que o conhecimento científico tinha por finalidade servir ao homem  e que este só podia ser alcançado através da eliminação de preconceitos, aos quais ele chamava de ídolos e que apontava como fontes de erro no espírito humano, classificando-os em quatro tipos:

1) Ìdolos da tribo – relacionados à  tendência inerente á tribo humana de simplificação das coisas, tomando como certo o que é mais favorável ou conveniente, como ocorre na astrologia, alquimia e cabala;

2) Ìdolos da caverna –  remete ao mito da caverna de Platão e decorre da própria educação e da pressão dos costumes sobre cada indivíduo, que reagirà a ela de maneira diversa;

3) Ídolos da vida pública, de foro ou de mercado – vinculados à linguagem, à sua ambiguidade e ao mau uso que dela fazemos: uma mesma palavra tem sentidos diferentes para os interlocutores, o que pode levar a uma aparente concordância entre eles;

4) Ídolos da autoridade ou de teatro – originados da irrestrita subordinação à autoridade.

Entre seus livros, podem ser encontrados atualmente nas livrarias brasileiras: “Ensaios Sobre Moral e Política”, pela Edipro; O Progresso do Conhecimento”, pela UNESP; “Da Proficiência e o Avanço do Conhecimento Divino e Humano”,  da Madras; e “Ensaios de Francis Bacon”, pela Vozes, entre outros.

Mas existe um outro Francis Bacon. Menos conhecido que o primeiro, porque raramente freqüenta currículos escolares  e porque é uma figura mais recente, de grande influência nas artes plásticas da segunda metade do século XX.

photo: Francis Bacon © Bill Brandt, 1963.

photo: Francis Bacon © Bill Brandt, 1963.

Nascido em Dublin, na Irlanda, mas tendo vivido quase toda sua vida em Londres, Francis Bacon foi principalmente um figurativista. Como Andy Warhol, de quem já tratei anteriormente neste blog. Ambos polêmicos e autores de obras que valem milhões de dólares – as semelhanças terminam aí. A produção artística de Bacon nunca foi exatamente palatável e talvez  o mesmo nunca tenha recebido encomendas de retratos, como Andy Warhol. A não ser de inimigos daqueles que deveriam ser retratados. Bacon retratava a si mesmo, amigos,  amantes,  e outros a partir de pinturas ou fotografias, numa imagem humana enquanto desumana[1].

Usava cores mais sombrias e trabalhava com temas transgressores, viscerais, de menor apelo popular, enquanto Warhol usava geralmente cores iluminadas e não-realistas e objetos retirados da cultura pop e de massa, que seriam devolvidos e consumidos por esta mesma cultura. Enquanto Andy Warhol  na grande maioria de suas obras plásticas conforta, Bacon desconforta com seu corpos distorcidos e contorcidos. Alias, Warhol conseguia essa sensação de desconforto com seus filmes e mesmo com algumas de suas obras plásticas bem menos conhecidas, como a série “Death and Disaster” –  reproduções monocromáticas de desastres de automóvel e de uma cadeira elétrica.

Francis Bacon, Pope II (Pope Shouting), 1951
Francis Bacon, Pope II (Pope Shouting), 1951


Francis Bacon tinha muitas obsessões. Uma delas era o filme “O Encouraçado Potemkin”, que dizem que o mesmo assistiu mais de 16 vezes. Outra eram os açougues, descritos por ele como locais de orgia da cor e como catedrais: sempre que de um deles saía,  sentia-se aliviado por não ser ele o sacrificado no altar bárbaro e laico erguido com o sangue e as vísceras de outros animais[2].

Há vários escritos sobre Francis Bacon. Entre as já publicadas em português, obras do filósofo Giles Deleuze[3] e  do crítico inglês David Sylvester[4]. Enquanto Sylvester foi seu amigo íntimo, Deleuze só encontrou Bacon uma vez na vida,  quando já havia lido a obra  na qual Sylvester pergunta a Bacon se o mesmo procurou deliberadamente o horror.

Não direi a resposta.


“(…) o que me importa num rosto é o que muda. Minha grande aventura é constantemente ver surgir algo desconhecido num mesmo rosto.” (Francis Bacon)

Referências:



[1] LUZ, Rogério. O Corpo Desfeito por Francis Bacon. Disponível na Internet: http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302000000200003&lng=pt&nrm=. Consultado em 10.10.09.

[2] GONÇALVES FILHO, Antônio. Caderno 2. Estado de São Paulo. Disponível na Internet: http://www.cosacnaify.com.br/LOJA/resenhas.asp?codigo_produto=101&language=pt. Consultado em 10.10.09.

[3] DELEUZE, Gilles. Francis Bacon. Lógica da Sensação. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2007.

[4] DAVID, Sylvester. Entrevistas com Francis Bacon. A Brutalidade dos Fatos.  São Paulo:  Cosac Naify, 2007.