Guernica: a de antes e a de depois

Lindevania Martins


Fotografia de Gernika após bombardeiro. (Exposição: “Gernika, de icono vasco a símbolo universal”, no Museo Arqueológico, Etnográfico e Histórico Vasco, em Bilbao.)

A palavra Guernica nomeia, simultaneamente, uma cidade e uma obra de arte. De outro ângulo, nomeia, ainda, o que é muito grande e o que é muito  pequeno:  a tela de Pablo Picasso é, literalmente, uma das maiores obras do mundo; a cidade, uma das menores cidades do mundo.

No idioma basco, Guernica é Gernika. O nome que de agora em adiante  se usará  no presente texto sempre que se falar da cidade, para que ninguém se perca entre uma e outra, reservando-se Guernica apenas para a obra.

Gernika, enfim, é uma cidadezinha espanhola, embora tradicional capital basca, que  se comprime por uma área de 847 m2 e cuja população, em 2009, era de apenas 16.244 habitantes[1].  Em 26 de abril de 1937, Gernika foi bombardeada  numa nefasta combinação de tecnologia e ideologia fascista: um ataque aéreo contra civis conduzido pelos nazistas, como estratégia de apoio ao ditador Francisco Franco, que solicitou a Hitler suporte aéreo e armas, incendiou, destruiu  a cidade e causou inúmeros mortos[2].

Picasso não estava em Gernika e nada presenciou, pois já morava em Paris. A notícia  daquela violência  não deve tê-lo pego desprevenido de todo, pois a Guerra Civil Espanhola havia estourado em julho de 1936. O horror que sentiu ao saber das dimensões da tragédia que se abatera sobre Gernika, veio do mesmo lugar que causou horror ao público que  mais tarde contemplou Guernica: a imagem. Picasso viu a destruição de Guernica nas fotografias dos jornais da época. Nos vimos e a vemos na pintura de Picasso. Mesmo que as estratégias cubistas  a alguns se sobreponham ao todo, mesmo que a austeridade do branco, preto e cinza aborreça a outros.

O que se vê em Guernica quando não se conhece sua história?

Congelar uma imagem não é uma forma de manter o grito, gravar na memória? Gernika  destruída e Guernica intacta.   O objeto e sua representação. A cidade e suas chamas, como um discurso, se desvanecendo; a obra, como uma escrita, garantindo a estabilidade do que não é permanente.

A pintura de Picasso é um mural de 7,8 x 3,5 metros. Executado em Paris, foi transferido para Nova Iorque durante a Segunda Guerra Mundial. O artista deu ordens expressas de que a obra deveria ir para Espanha apenas quando este fosse um pais democrático.  Em setembro de 1981, oito anos após a morte de Picasso, Guernica foi retirada do MoMA  e chegou a Madri. Faz parte do acervo do Centro de Arte Rainha Sofia.

Hoje a cidade se chama Gernika-Lumo. Em 1983, Gernika adicionou  o termo ao seu nome. Talvez para lhe desvincular um pouco da tela de Picasso. Para apagar um pouco daquela lembrança. A notoriedade da obra de Picasso, excluindo a seletividade da memória, talvez tenha tornado muito difícil àquele povo esquecer, ou não sofrer, com o passado, com a destruição, com a morte, com o aniquilamento.  Mas aqui já são só conjecturas.

Precisa-se saber do que ocorreu em Gernika para olhar  para Guernica?  Guernica não foi mais uma experiência estética, mas ação política, criação de um símbolo. As narrativas sobre o que de fato ocorreu em 26 de abril de 1937 perderam força diante da tela do artista. Guernica se tornou mais real que Gernika. Mas Guernica,  a tela, sem Gernika, a cidade, é uma imagem vazia.  E esvaziada de seu significado,violência gratuita.

E como Gernika destruída pode ser tão penosa e terrível, e Guernica tão bela e sublime? Então, antes que se fale da estetetização da  violência, ou antes, a propósito dela mesmo, trecho do Manifesto Marinetti, reproduzido por Walter Benjamin, em “A Obra de Arte na Época da sua Reprodutibilidade Técnica”:

“ A guerra é bela porque inaugura a sonhada metalização do corpo humano. A guerra é bela porque enriquece um prado florescente com as  orquídeas de fogo das metralhadoras. A guerra é bela porque reúne numa sinfonia o fogo das espingardas, dos canhões, do cessar-fogo, os perfumes e os odores de putrefação. A guerra é  bela porque cria novas arquiteturas, como a dos grandes tanques, a da geometria de aviões em formação, a das espirais de fumo de aldeias a arder e muitas outras…”.



[1]WIKIPEDIA. Disponível na internet:  http://pt.wikipedia.org/wiki/Guernica. Acessado em 20.05.10.

[2] BECRAFT, Mel. Picasso’s Guernica.  2 ed. California, 1986. Disponível na internet em: http://community.novacaster.com/attach.pl/341/387/Images_within_images_3rd_Ed.pdf.  Acessado em 20.05.10.

Yves Klein – Além do Azul

Lindevania Martins

“Para mim, as cores são seres vivos, indivíduos extremamente evoluídos que se assemelham a nós e a todo o resto”.  (Yves Klein)

A arte contemporânea  necessita de explicitação.  Pensa Tom Wolfe e o diz ironicamente,  afirmando que “a arte  moderna  se tornou inteiramente literária: as pinturas e outras obras só existem para ilustrar o texto”,  não se tratando de “ver é crer”, mas “crer é ver” (WOLFE: 2009). Para Henry Flynt, que teria sido o primeiro a utilizar o termo “arte conceitual”,  em 1961, os conceitos são a própria matéria da arte, visto que ela está vinculada à linguagem, pelo que interessa mais a idéia que a sua execução.

Poucos levaram os conceitos de arte tão  longe quanto Yves Klein. Nascido  na França em 1928,  Klein era um provocador. Três anos mais velho que Tom Wolfe, enquanto este renovava o jornalismo nos Estados Unidos e andava por Nova Iorque fazendo  crítica de arte, o artista plástico, literalmente, incendiava ou esvaziava seu trabalho na Europa.

Como Flynt, Klein acreditava que o conceito que originava a obra de arte era mais importante que ela mesma: executada e observável.  Wolfe diria: “Francamente, nos dias que correm,  sem uma teoria para endossá-la, é impossível ver uma pintura”  (WOLFE:  2009).

A experiência artística em Klein é radical, sustentada por suas idéias inusitadas e arrebatadoras, compartilhadas com o público em toda sua vitalidade e, por vezes, efemeridade. O artista queria  se afastar do “velho academicismo do pincel, da cor”, do “complexo de cavalete”.  Buscava um elemento pictórico puro que sensibilizasse quem o contemplasse, tendo  chegado, após vários experimentos, ao International Klein Blue, patenteado em 1960.  Afastando-se dos pincéis convencionais, quis apresentar o pincel vivo, numa atitude ofensiva às mulheres, que se viram tratadas como objetos. Literalmente: o pincel vivo eram modelos nuas molhadas em  tinta. Pulemos essa parte.

Em abril de 1958, uma exposição de Klein virou lenda. O público de mais mil de pessoas que se dirigiu a Galeria Iris Clert, em Paris, ficou espantado com o que viu. E com o que não viu. Tendo despojado a galeria de todos os seus móveis, Klein a  pintou inteiramente de branco utilizando a mesma técnica empregada em seus monocromos. O evento ficou conhecido como “O Vazio”. Albert Camus, um dos presentes na exposição, teria escrito no livro de honra da mesma: “Com o vazio, plenos poderes”.  No coquetel, uma bebida fez os presentes sentirem na carne- ou melhor, nos seus fluidos corporais, as idéias do francês louco: mais tarde, urinaram em azul (WEITEMEIER: 2005).


Entre 1947 e 1961, Yves Klein apresentou repetidas vezes o trabalho “Sinfonia Monotônica” ou “Sinfonia Monôtona”, na Galeria Internacional de Arte Contemporânea, em Paris. Tratava-se de uma peça musical composta por ele, de apenas uma nota, repetida durante vinte minutos. No texto “The Chelsea Hotel Manifesto”, Yves se refere à mesma afirmando que propôs ali uma nova concepção de música.

Em março de 1960,  uma nova exibição da sinfonia, agora fechada ao público, incluía uma novidade. Paralelamente, no mesmo salão ocupado por 20 músicos clássicos, apareciam três modelos nuas, com baldes de tinta azul.  Na parede oposta àquela onde se encontravam os músicos, gigantes tiras de papel dispostas na parede. Envolvendo seus corpos em tinta azul, as modelos tinham os movimentos dirigidos por Klein, impregnando as tiras de papel com suas impressões corporais.

Enfim, Klein pintou  e bordou. Ou quase. Não pintou apenas com seu pigmento novo, mas também com fogo e água. Saltou no vazio: “Um homem no espaço”. Criou a “Zona de Sensibilidade Pictórica Imaterial”.

Para Joseph Nechvatal, Klein é o mais importante artista fracês depois de Henri Matisse. Para ele, o trabalho de Klein, ao focar no imaterial, no vazio, no efêmero, é de grande relevância para nossa era digital.

Como Piero Manzoni,  morreu cedo. Antes dos 40 anos de idade, de ataque cardíaco e no auge da fama. Antes, porém, fez uma piada com  Malevitch e seu “Quadrado Negro Sobre Fundo Branco”:  “Malevitch pintou uma natureza morta a partir de uma de minhas pinturas monocromáticas” (GOODING: 2004 ).

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Referências:

GOODING,  Mel. A arte abstrada. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

NECHVATAL, Joseph. Yves Klein: corps, coleur, immatériel. Disponível na internet  em http://www.eyewithwings.net/nechvatal/Klein/Klein.htm. Consultado em 12.12.09.

KLEIN, Yves. The hotel Chelsea Manifesto. Disponível na internet  em http://www.yvesklein.de/manifesto.html. Consultado em 12.12.09.

WEITEMEIR, Hannah. Yves klein.  Singapura: Taschen, 2005.

WOLFE, Tom. A palavra pintada. 9 ed. Rocco: São Paulo: 2009.

Cinema para Ler

Lindevania Martins

Jornal do Brasil, 1o. de maio. Na lista dos livros de ficção mais vendidos,  o  primeiro lugar é de um livro publicado na Europa em 1865. O sétimo lugar também.  Espanto?

Explica-se: estão nas livrarias várias edições diferentes de Alice no País das Maravilhas, do inglês Lewis Carroll. Destas,  a mais vendida é a edição da Jorge Zahar. O  sétimo lugar pertence à  edição da  Cosac e Naify. As outras edições, embora não constem da lista, não devem estar mal.

Registre-se que tal livro, provavelmente, nunca apareceu no Brasil em listas de mais vendidos. O que justifica o interesse repentino por ele?

O cinema!

Filmes vendem livros e livros vendem filmes. Até aqui nenhuma novidade, afinal, Crepúsculo, Harry Poter e O ladrão de Raios estão aí para servir de exemplo. O longa “Xico Xavier” atraiu multidões ao cinema e, na mesma lista do Jornal do Brasil,  o livro  As Vidas de Xico Xavier aparece em primeiro lugar na lista de livros de não-ficção mais vendidos.  Amparado no seu  fenômeno de vendas, O Doce Veneno do Escorpião de Bruna Surfistinha parece que vai virar filme, e se for um sucesso no cinema, fará com que  se venda  mais do mesmo.

Por ocasião do lançamento do filme de Vater Sales chamado Ensaio Sobre a Cegueira, o livro de José Saramago, também figurou nos  primeiros lugares. O mesmo com O Amor  em Tempos de Cólera.

O cinema é, por excelência, o grande meio de comunicação de massa. Leia-se: o cinema americano.  Se a televisão é local, o cinema americano é global. E não importa que não se fale inglês em  qualquer lugar do mundo. É para isso que existem legenda e dublagem.

Lewis Carroll em seu universo

O cinema tem conseguido a proeza de transformar clássicos em best-sellers do séc. XXI.  Transforma espectadores em leitores, ainda que direcionados para obras previamente escolhidas por ele. Transforma leitores em novos leitores  das mesmas obras e em espectadores vorazes quando filma best-sellers.  Parece um círculo vicioso?

Antes mesmo do  filme de Tim Burton ser lançado no Brasil, começou o que  vem sendo chamado de Alicemania.  Nos tristes trópicos, foram lançados sapatos, camisetas, baralho. Livros. Todos entre os mais vendidos. Alguns esgotados.  Foram feitos ensaios de moda, lançadas propagandas, festas, baseadas em Alice.

O filme Alice não é uma adaptação da obra de Carroll. O cineasta americano coloca em cena uma Alice já adulta, portanto, bem diferente da história original. Registre-se que o livro de Carroll não é considerado uma narrativa trivial, embora obras não-trivias possam ser lidas dessa maneira. De fato, é considerado uma leitura difícil, que permite múltiplos enfoques.

Verificada a corrida às livarias que certos fimes provocam, os que propagam o fim da cultura letrada e os que colocam os meios de comunicação  de massa sob suspeita, teriam que capitular e aceitar que o demônio não é tão feio quanto pintam? Teriam algo a comemorar?

 

Editores e livreiros têm.

Tim Burton também.

Após o curta Frankenweenie (1984) – sobre um menino que vê seu cão Spankie ser atropelado na rua e o traz de volta à vida, à moda Frankestein, Tim Burton foi demitido dos estúdios Disney.  A justificativa era de que o mesmo realizava filmes muito assustadores para a família, portanto, sem chance de retorno dos  investimentos financeiros do estúdio.

De volta à Disney,  após sucessos como Peixe GrandeA Fantástica Fábrica de chocolate, A Noiva Cadáver e Sweenie Todd, Tim Burton  se tornou mais pop do que nunca! E mais cult também. Entre novembro de 2009 e abril de 2010, foi realizada uma retrospectiva sobre a obra do cineasta no Museum of Modern Art (MoMA), em Nova Iorque, com ilustraçoes, pinturas, esculturas, textos, etc. sobre Tim Burton ou do próprio cineasta.

Mas… nada se compara a Alice!